19 outubro 2021

histórias de família

 

Depois da morte da mãe, um amigo nosso tirou férias para vir para Berlim esvaziar o apartamento - o que acabou por se tornar uma incursão em mais de 100 anos de História da Europa.
O avô materno era um "suábio do Banato", a minoria descendente de colonos alemães que, ao longo do século XVIII, o império austríaco enviou para repovoar as planícies do Banato, muito destruídas pelas guerras turcas. Sem mudar de residência, na primeira guerra mundial mandaram-no lutar pela Áustria, e na segunda pela Roménia. Nesta, foi ferido e estropiado. Veio morar com a família para Berlim, e foi preso num dia gelado do inverno de 1947, por ir com um sobretudo militar (em 1947 não havia muito pronto-a-vestir para as pessoas mudarem o guarda-roupa) sentado num eléctrico, e não ter cedido o seu lugar a um oficial soviético que entretanto entrara. Mandaram-no para Sachsenhausen, um dos antigos campos de concentração dos nazis que a URSS reabriu com nova gerência e igual arbitrariedade. Morreu em 1949, deixando viúva e três filhas pequenas. A avó materna morreu em 1957, mas ao pressentir o seu fim contactou familiares na Alemanha Ocidental para criar uma rede que segurasse as três filhas adolescentes. Em 1957 ainda era relativamente fácil fugir da RDA, onde elas estavam, e elas fugiram, deixando para trás a casa que tinham herdado dos pais.

A mais velha tinha 16 anos, e ficou em Berlim ocidental a estudar enfermagem numa escola com internato dirigido por freiras de mão forte e férrea moral. Ela aguentou a falta de liberdade e as humilhações porque, órfã de pai e mãe, num mundo a tentar reerguer-se das ruínas, não tinha grande alternativa.

No seu trabalho como enfermeira conheceu um jovem que também fugira da RDA, porque se apercebera de que, pelo facto de ser católico, o regime o impediria de estudar medicina como queria. Na Alemanha ocidental a sua situação não melhorou muito: não apenas não lhe reconheciam as cadeiras de medicina que já fizera na RDA, como nem sequer lhe aceitavam o diploma do secundário. Como regressar aos bancos da escola era impensável naquele tempo em que urgia conseguir um emprego para se poder sustentar, ele optou por se tornar enfermeiro.
Casaram, tiveram dois filhos, arranjaram um apartamento pequeno onde se acomodaram os quatro.

Quando chegaram à idade da reforma, os avós paternos e uma tia avó conseguiram autorização da RDA para se mudarem para Berlim ocidental (a RFA que lhes pagasse as reformas). Instalaram-se no pequeno apartamento da família de Berlim ocidental, dormiam os três num quartinho. A alegria do reencontro foi grande, mas ao fim de dois meses o avô, já muito doente, morreu. A avó e a tia acabariam por mudar para um apartamento ainda mais pequeno, que entretanto vagara no mesmo prédio, e ali viriam a morrer muitos anos depois.

Entre os papéis que encontrou na casa dos pais, o meu amigo encontrou uma carta que um antigo prisioneiro de Sachsenhausen enviara à família, com uma última mensagem do avô materno, a descrição do que fora a sua vida no campo e a reafirmação do amor que tinha pela sua família.

E havia um outro papel, uma revelação chocante da dificuldade em tirar a lógica da RDA da cabeça das pessoas que nela viveram. Acontece que depois da queda do muro e da reunificação, a mãe do meu amigo e as duas irmãs dela pediram a devolução da casa de família, que tinha sido expropriada pelo Estado após a fuga. Em finais dos anos 90, quase dez anos depois da reunificação, veio a decisão de um tribunal com sede no leste da Alemanha: não devolvia a casa porque o modo como as três irmãs tinham abandonado o país demonstrava uma atitude de falta de respeito às suas leis e às ordens da polícia.

A mãe do meu amigo morreu há alguns meses, depois de vários anos em sofrimento devido a uma osteoporose muito avançada. Morreu no seu pequeno apartamento de Berlim, onde criara os filhos e ajudara as muitas pessoas que a procuravam. Os dois filhos prepararam uma play list com as músicas favoritas da mãe, e acompanharam a moribunda até ao seu último suspiro.

Morreu no momento em que "What a Beautiful World" dava lugar a "Smile", e eu sinto-me comovida e reconfortada por ela se ter apagado ao som destes poemas que tão bem descrevem as estratégias de sobrevivência que a ajudaram a amar a vida tão cheia de golpes que foi a sua.



Smile though your heart is aching Smile even though it's breaking When there are clouds in the sky, you'll get by If you smile through your fear and sorrow Smile and maybe tomorrow You'll see the sun come shining through for you

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