29 agosto 2021

enquanto isso, em Kabul...

Os taliban invadiram Kabul bem antes da altura prevista pelos incompetentes que governam o mundo, e este blogue entrou em letargia. Bem sei que corro o risco do ridículo, porque o planeta continua a girar à mesma velocidade independentemente do que escreva aqui, mas não tenho conseguido conciliar num só blogue os dois planos - o desta minha vida que continua amena, e o da tragédia afegã que corre a passos cada vez mais rápidos para o seu desfecho anunciado. 

Já comecei vários posts sobre a tragédia do Afeganistão, e perdem a actualidade mesmo antes de serem publicados. Simultaneamente, a minha vida berlinense recomeçou com a intensidade habitual - mas tenho uma espécie de prurido em escrever os textos do costume.

Como posso contar sobre as férias e o meu regresso a Berlim sozinha de carro (3 dias ao volante) e no post seguinte falar sobre o regresso ao futuro que ameaça as mulheres de Kabul? Como publicar as terríveis imagens dos afegãos no aeroporto, e a seguir escrever sobre o início da temporada na Filarmonia, ou resmungar sobre a seca na hortinha apesar de todos os dias haver previsão de chuva? Como posso partilhar fotos da reabertura da Neue Nationalgalerie e dos passeios com o Fox, e entremear com imagens de pessoas a cair de um avião?

Como escrever sobre o asco (é a palavra) que sinto pelos políticos que andaram a dificultar deliberadamente a fuga daqueles que acreditaram na promessa de modernizar o país e por causa disso têm agora a cabeça a prémio - e a seguir comentar que a máquina de lavar a louça que comprei há tempos é tão económica tão económica tão económica que acaba por não lavar a louça bem como devia?

Como explicar (até a mim própria) que é possível sentir uma apreensão sincera ao abrir o twitter, por saber que vou ser confrontada com imagens terríveis, e passar depois para o instagram e desatar a distribuir coraçõezinhos entusiasmados pelas férias dos meus amigos?

A verdade é que enquanto o "sonho americano" em que alguns afegãos acreditaram se tornou um horroroso pesadelo, a nossa vida nesta parte da Europa continua como antes: as férias e o trabalho, a família e os amigos, os propensos à cretinice a instrumentalizar a tragédia afegã para tentar encurralar ou ridicularizar adversários, os egoístas empedernidos a afirmar que "eles não são dos nossos" e devem ficar num dos países vizinhos ("eles":justamente os afegãos que acreditaram no horizonte que nós lhes prometemos e participaram na construção de uma sociedade à imagem das ocidentais, mesmo que isso implicasse fechar os olhos aos tantos erros cometidos pelos ocupantes).

Sim, tudo na mesma: apesar da vergonha que sinto pela traição mortal que o Ocidente de que faço parte cometeu contra tantos afegãos e contra a sua credibilidade como defensor dos direitos humanos, a minha vida continua igual ao que era. E dou-me conta de que seria até hipócrita manter este blogue mudo de vergonha e choque enquanto eu, eu propriamente dita, continuo a viver como sempre. 

Por isso recomeço: dois dedos de conversa sobre o que nos desaquieta, o que nos faz rir e o que dá que pensar, o que nos choca e o que nos alegra. Sobre a vida tal como nos vai acontecendo: na sua imensa variedade.


2 comentários:

CCF disse...

Helena, compreendo-a, senti o mesmo. Mas tantas e tantas atrocidades têm existido...e nós temos de continuar, nem que seja para exprimir a nossa indignação e fazer o que nos for possível.
~CC~

Lucy disse...

Ai, Helena, tão, tão... nem consigo encontrar a palavra certa