15 agosto 2021

15 de agosto de 2021 - por quem dobram os sinos?

Hoje é o dia 15 de agosto de 2021, Berlim está linda de sol e verão, pela janela aberta chegam-me os gritos alegres das crianças que brincam à solta na rua, faço piadas sobre comer chocolate e adiar o início da dieta. 

É também o dia em que Kabul caiu nas mãos dos taliban, e a Alemanha acordou sobressaltada - pensava-se que demorariam ainda entre 2 e 3 semanas a chegar à capital, e afinal precisaram apenas de meia dúzia de dias. A informação, esta manhã, era de que iam começar amanhã a evacuação dos alemães que ainda estão na cidade. A troça no twitter não se fez esperar: "ao domingo não se trabalha na Alemanha..." As críticas e os apelos também estão a chegar em força: como é possível a Alemanha não estar em condições de iniciar imediatamente as operações (tanto mais que sabia perfeitamente o que ia acontecer) e, mais grave ainda, como é possível que deixe para trás os cidadãos afegãos com quem trabalhou ao longo destes 20 anos, e que ninguém duvida que nos próximos dias vão ser cruelmente assassinados pelos novos senhores da cidade?
(Ah, se deixassem o twitter mandar...)   

Como tantas vezes nestes tempos de informação omnipresente, sinto o coração apertado pela desmesurada tragédia que se abate sobre aquele país - mas ao mesmo tempo saboreio o meu almoço de domingo e todas as pequenas alegrias que se me oferecem. Uma espécie de esquizofrenia que me (nos) deixa a salvo de sucumbir ao sofrimento do mundo?   

Pergunto-me ainda: porque me aflijo tanto com Kabul, se nem sei o nome das regiões de onde os taliban nunca chegaram a sair? Provavelmente - é com vergonha que o reconheço - porque é em Kabul que estão os últimos ocidentais, e era em Kabul que tínhamos ancorado a esperança de levar os nossos valores àquela sociedade. Hoje o "meu" Afeganistão foi derrotado - o Afeganistão que ensaiava passos de liberdade religiosa, de liberdade de expressão, de direitos iguais para as mulheres, de respeito pelos LGBT...

Penso no texto de John Donne: "Ninguém é uma ilha isolada; cada pessoa é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer pessoa diminui-me, porque sou parte da humanidade. E é por isso que não deves perguntar por quem os sinos dobram: eles dobram por ti."

Se a tragédia do Afeganistão me dói tanto hoje, suspeito que é por essa espécie de torrão que está a ser arrancado à Europa. 

(Eis como em duas penadas consigo subverter a ideia universalista de John Donne - e vou passear o cão, que não tem culpa nenhuma, e já está farto de esperar.) 


Sem comentários: