11 fevereiro 2021

do nevão ao chilrear das crianças: o dia perfeito

Enquanto o sol decide se veio para ficar, ou se me vai dar uma desfeita quando chegar ao lago, 

(a brincar a brincar são 3 km para chegar lá, mais 4 ou 5 km para lhe dar a volta, mais 3 km para regressar, e boa parte disso a andar com cuidado para não escorregar no gelo)

partilho mais algumas fotos das que fiz ontem. 



O dia começou com um belo nevão, como se pode ver neste curto filme que fiz à varanda, com uns cinco graus negativos. O chilrear dos pássaros no meio de tanta neve surpreendeu-me.

Por volta das dez da manhã o céu abriu radioso, e pus-me a caminho do lago Grunewald. 
As casas da Königsallee pareciam presentes de natais ricos, muito bem embrulhadas na luz magnífica. Um festim para a minha Olympus de bolso. 





Ao passar por um senhor que estava a tirar a neve da rua para libertar o seu carro, ele olhou para mim muito mais tempo do que é habitual neste bairro onde impera a discrição, e perguntou: "então, já fotografou tudo?"

Não estava a ser simpático. Pelo contrário: estava a fazer uma mijinha no seu território. Gente que vive em casas de milhões, e estaciona cem mil euros na rua, é assim. De modo que pespeguei em mim o sorriso mais simpático de que sou capaz, e respondi: "Não, que ideia! Só fotografei o que é realmente bonito". Pus um tom displicente no "não", e um encantado no "bonito" - e exagerei o sotaque francês, para não se espalhar pelo bairro o boato de uma máfia portuguesa a fotografar as casas sabe-se lá com que intenções.

Escolhi the less traveled road: o pequeno caminho aberto na neve ao longo do canal entre os lagos Grunewald e Hundekehle. Mas gelado e coberto de neve não é tão bonito como quando na margem há garças serenamente à espera que o almoço lhes passe à frente, e a água empresta azul à paisagem. 

Encontrei uma cova por baixo de uma árvore, com pegadas frescas de javali. Num dia perfeito de sol e neve uma pessoa até se esquece que a natureza é muito mais que apenas cenário.

Mais à frente desemboquei na praia dos cães, que parecia aquelas cenas do Pieter Bruegel, mas com os animais a passearem as suas pessoas.






Do Pieter Bruegel para o palácio de caça dos Hohenzollern, com a sua colecção espantosa de pinturas dos Cranach: como a casinha encantada da bruxa da floresta. 

Em tempos normais seria uma óptima oportunidade para parar no café, tomar uma bebida quente e comer uma fatia dos bolos excelentes que lá costuma haver. Mas em tempos de covid está tudo fechado, e a pobre Lucrécia do cartaz junto ao portão pareceu-me tiritar de frio e abandono. 



O restaurante Paulsborn também está fechado, mas as casas de banho (aleluia!) estão abertas. E tem umas roulottes na esplanada, onde vendem salsichas grelhadas, gyros, bolos, bebidas.
Para quem, como eu, vem da Königsallee, é o sítio ideal para uma pequena pausa no passeio. E para apreciar um ou outro esquiador de fundo: se não podes ir aos Alpes, os Alpes vêm até ti. 



No regresso, pela margem ocidental do lago, encontrei uma mesa posta para os pássaros. Opípara. Nova paragem para fotografar os bichos que vinham servir-se. Uma festa de chapins - azuis, reais, palustres -, um pica-pau de cabeça vermelha, alguns melros, uma cotovia-de-poupa muito tímida. Ficava ali o dia inteiro, mas tive de me pôr a andar quando o frio me tomou conta das mãos e dos pés. 

Devia ter continuado sem mais nenhuma paragem, mas numa curva do caminho não resisti a fotografar o palácio em frente ao lago. Enquanto experimentava o melhor enquadramento, dois homens pararam demasiado perto de mim, e puseram-se a fazer imagens panorâmicas que me incluíam. Virei costas, sem lhes perguntar "então, já fotografaram tudo?"




O lago já está praticamente todo fechado de gelo. Sobra apenas uma pequena clareira, onde se juntaram vários patos, galeirões e cisnes. Uma garça passou a voar por eles, e pousou na margem, olhando atentamente para a terra: será que trocou os peixes por ratos do campo?





Num dos poucos lugares onde permitem o acesso à margem do lago, desci para observar mais uma cova de javali (ou seria de raposa?) feita entre as raízes de uma árvore. Os dois figurões que vinham atrás de mim desceram também. Um deles foi para cima do gelo e anunciou que estava bem mais sólido do que na margem oposta. Para provar o que dizia, começou a saltar. A placa de gelo ondulava como um toldo ao vento, e ele aos saltos a gritar "está seguro! está seguro!" 
O gelo abriu-se, e ele caiu na água até ao meio da perna. "De qualquer modo, já estava na hora de ir para casa...", disse na minha direcção, e eu reprimi a vontade de fazer uma panorâmica que o incluísse. Fiz de conta que nem estava ali, pus-me a fotografar a cova do javali como se não houvesse nada mais fascinante no mundo, e depois de eles desaparecerem voltei ao lugar do fiasco para fotografar o buraco no gelo. Sei de uma garça que vai gostar. 





Ao passar pela residência do embaixador da Turquia, o polícia que estava de guarda apontou na minha direcção e perguntou alguma coisa que não percebi. Olhei para o casaco, temendo encontrá-lo sujo de chapim, mas não. Interessava-se pelas minhas fotografias. Pareceu-me sincero, mas anotei: um dia que queira tirar fotografias com más intenções tenho de ser muito mais discreta.

(Por acaso já devia saber isso: bem me lembro que desmantelaram um grupo de terroristas porque seguiram a pista de dois que se deixaram apanhar a fotografar edifícios militares.) (Ai! Provavelmente já me fizeram a ficha por causa dos milhares de fotografias que tirei da doca seca da marinha francesa, em Brest!) (Senhor juiz: eles é que puseram lá os barcos, eu não tenho culpa de haver uma doca seca por baixo do meu céu bretão!)

Mesmo assim, quando passei em frente à "Casa dos Leões" fotografei os ditos, que estavam cobertos de neve, porque me pareceu que mais tarde ou mais cedo pode dar uma alegoria qualquer para o Sporting. (Senhor juiz: não me diga que é do Benfica?!)


Passei ainda por outro lago para ver os miúdos a brincar com os trenós. Mais que ver: ouvir. 
Já não me lembro de quando foi a última vez que ouvi gritos de crianças felizes a correr em todas as direcções. Mas em termos de distanciamento físico, convenhamos que o panorama não era exemplar. 




Só quando cheguei a casa, depois de seis horas a andar com cuidado sobre a neve e a parar frequentemente para fotografar é que me dei conta de como estava cansada e com frio. Mas que me interessa? Já combinei o próximo passeio com a família. E é se não voltar lá sozinha amanhã. Hoje não, que o sol está a armar-se em esquisito. 


5 comentários:

jj.amarante disse...

Na 5 há um telhado que parece mal isolado porque a neve derreteu em boa parte, o 6 é uma moradia unifamiliar apalaçada? A 13 é um museu? Tadinha da modelo do Cranach na 13, toda nua num frio desses. Saiu bem a 18. Na 20 assustou a garça para ela levantar voo? O que são os buracos na 9 e na 24? Parecem perigosos. Vivam também as 26 e 27!

Cláudio Teixeira disse...

Muito obrigado pelos momentos maravilhosos que as fotos e o seu contar me proporcionaram. De Berlim, onde já estive, sempre poucos dias, praticamente só conheço o Mitte e a Insel com o Museum que visitei pela primeira vez em 1986 numa visita no contexto de um workshop de sociologia organizado pelo Viena Center na então DDR.Em 2012, indo ao Luxemburgo visitar um filho, fui a Berlim mostrar à minha mulher (já falecida) o pouco que conhecia, especialmente o Nikolai Virtel.

Cláudio Teixeira
claudio.rmt@gmail.com

Cláudio Teixeira disse...

Muito obrigado pelos momentos maravilhosos proporcionados pelas fotos e pelo passeio virtual conversado. De Berlim, praticamente só conheço o Mitte, a Insel com o Museum que visitei pela primeira vez em 1986 numa visita no contexto dum workshop de sociologia organizado pelo Viena Center na então DDR. Em 2012, tendo ido ao Luxemburgo visitar um filho, voltei a Berlim para mostrar à minha mulher(já falecida) o que conhecia, sempre gostei muito do Nikolai Virtel.

Cláudio Teixeira

claudio.rmt@gmail.com

JCS disse...

Que viagem fantástica! (a leitura deste post)
Obrigado!

Helena Araújo disse...

jj.amarante,
O telhado sem neve deve dever-se provavelmente à combinação da inclinação com a exposição a sul. A casa do nº6 é agora uma fundação. O que mais há no meu bairro são palacetes enormes e bastante sumptuosos, feitos no princípio do séc. XX para as famílias mais abastadas de Berlim. Não conheço em Portugal nenhum bairro semelhante. Eram realmente palacetes enormes, no meio de parques enormes, às portas da cidade.
A nº 13 é o Jagdschloss Grunewald. Mais do que um museu. Era um palácio de caça, no qual agora se guarda uma excelente colecção de pinturas do atelier dos Cranach pai e filho, além de outros pintores e várias peças ligadas à caça.
As nº 9 e 24 sõ buracos cavados entre as raízes das árvores. Não sei se são abrigos para javalis ou para raposas. E sim: parecem perigosos.