20 julho 2020

carne para canhão

Se bem entendi: Artur Mesquita Guimarães, pai de seis filhos, escolheu usar dois deles para fazer um braço de ferro com o Ministério da Educação. O pai entende que a matéria dada na nova disciplina "Cidadania e Desenvolvimento" (ver os temas no gráfico acima) deve ser do exclusivo foro feudo dos pais. Em vez de usar os mecanismos que o Estado de Direito põe à disposição de todos (exposição, pedido de dispensa a determinados temas, pedido de providência cautelar, processo em tribunal), simplesmente não deixou que os seus filhos frequentassem as aulas dessa disciplina, apesar de conhecer perfeitamente as consequências dessa decisão (que é: reprovar o ano por faltas). Entre uma atitude de cidadania e uma atitude prepotente de atroz primarismo, escolheu a segunda: "os filhos são meus, faço com eles o que muito bem me apetecer". Belo exemplo que dá aos filhos... - e logo aquele pai que, ironicamente, reclama para si o papel de educador absoluto, sem interferências do Estado.
Procurei na net detalhes que justificassem a posição de Artur Mesquita Guimarães. Não encontrei nenhuma informação sobre falha concreta da escola ou dos professores dessa disciplina. Encontrei o que parece ser um documento - infelizmente truncado - da Assembleia da República, de 14.4.2009. Aparentemente, o problema de Artur Mesquita Guimarães, já em 2009, era a inclusão da Educação Sexual no currículo escolar. Não uma orientação em particular, mas a Educação Sexual, tout court. Que entenderá ele por "Educação Sexual"? Que tipo de perversidades e perigos intui ele sob esse nome? E que pouca confiança terá nas suas capacidades como educador, para temer que meia dúzia de aulas na escola possam deitar por terra todos os princípios que laboriosamente inculca aos filhos? Ao ser agora confrontado com as consequências das escolhas que fez, e que conhecia perfeitamente quando tomou a decisão, Artur Mesquita Guimarães escreveu uma Carta Aberta que foi publicada - oh, surpresa! - no site "Notícias Viriato" (classificado como "meio de desinformação" na lista de vigilância do MediaLab do ISCTE). Partilho-a no fim deste post: é a segunda fase da sua estratégia no braço de ferro que decidiu travar com o Estado português. Na terceira fase da sua estratégia está a contar connosco, muito bem manipulados por ele: uma turba enfurecida que se erga contra aquilo a que ele chama o "totalitarismo" do Estado. Já arranjou uma amiga para publicar no Observador um artigo a seu favor, e que é particularmente elucidativo na parte em que usa a escola pública da Califórnia como exemplo: "Até nas outras disciplinas, como ciência ou filosofia, o professor tinha cuidado para não interferir com a liberdade de pensamento individual dos alunos e respectivas famílias". Sim, leram bem: professores de ciências que têm o cuidado de ensinar ciência sem interferir com a liberdade de pensamento individual! Infelizmente, isto não é inventado. Eu própria vi, em 2001, numa reunião de pais em San Francisco: a professora primária da minha filha a gaguejar para explicar porque é que pôs um poster sobre a evolução das espécies na parede da sala de ciências daquela escola. É caso para dizer: "quem tem amigas assim, não precisa de inimigos". O texto de defesa da posição deste pai, no Observador, já aponta para o que pode acontecer a seguir, se o Ministério da Educação ceder neste braço de ferro. De hoje para amanhã, os filhos dos terraplanistas podem deixar de frequentar as aulas de Geografia, os filhos dos anti-vax podem deixar de frequentar as aulas de Ciências, os filhos dos apologistas do Estado Novo podem deixar de frequentar as aulas de História.
Mas foquemo-nos no que é realmente importante: a situação destes dois menores, encurralados entre as regras do Estado e a prepotência do pai. O que sentiriam todas as vezes que faltaram às aulas daquela disciplina? O que sentiram quando a escola avisou os pais de que os filhos iam perder o ano por faltas? O que estão a sentir agora que foram confrontados com as consequências da decisão dos pais, e reprovaram por excesso de faltas injustificadas? Como será viver na situação de refém dos próprios pais, que abusaram do seu poder de educadores e puseram em causa o bem-estar dos filhos, servindo-se deles como alavanca para aumentar os efeitos mediáticos da sua guerra ideológica contra o Estado? Alguém informe esse pai que numa sociedade democrática se pode debater tudo, mas não se pode fazer tudo. Que "objecção de consciência" é um conceito muito sério, e não se aplica a birras como este espernear descontrolado para impor que só os pais tenham o direito de falar de certos temas com os filhos. Alguém lhes diga que os pais não são proprietários dos filhos. Alguém (nomeadamente os serviços de protecção de menores) explique a essa família que o primeiro dever dos pais é proteger os filhos, o exacto contrário de se servir deles como carne para o canhão das suas guerras ideológicas.
(Ah, sim, quase me esquecia: o perigo do "marxismo cultural". Essa questão resolve-se facilmente: apresentem casos concretos de algo que foi ensinado pelos professores desta disciplina e é contrário aos valores básicos da nossa sociedade.)
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Carta Aberta a Secretário de Estado da Educação
Exmo. Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação
Prof. Doutor João Costa
Pela presente venho apresentar-lhe os meus sinceros agradecimentos!
Eu sou aquele pai e, naturalmente, também encarregado de educação, que não autoriza a participação dos filhos na disciplina, recentemente criada, de “Cidadania e Desenvolvimento (CD)”.
Não à revelia, tendo em conta que disso demos conhecimento à Escola e não só - grande parte da troca de correspondência com a escola foi com conhecimento do Sr. Ministro da Educação e da DGEstE – mas oportuna e atempadamente, desde que a disciplina foi introduzida.
Nada temos a temer
Acontece que, na semana passada, mais propriamente no dia 27 de Fevereiro, foi-me entregue, a mim e à minha esposa, em mão própria, com direito a “Certidão de Notificação”, um Despacho subscrito por V. Exa. a 16 de Janeiro de 2020, acompanhado de outra documentação com ele relacionada, da IGEC e da DGEstE, pelo crime de lesa majestade que eu e a minha esposa teríamos cometido ao não deixar os nossos filhos participar na disciplina acima referida.
Estou-lhe agradecido, particularmente, porque esta documentação retrata inequivocamente a intenção ditatorial do Estado em, abusivamente, ocupar/invadir o espaço educativo consagrado na Constituição da República Portuguesa aos PAIS. É uma espécie de tique que já se arrasta de há uns anos a esta parte, embora agora com um avanço significativo na criação da recente disciplina, CD, elevada ao estatuto de curricular (!).
É de estranhar a falta de cuidado nas medidas preconizadas a aplicar aos meus filhos - retrocederem de ano a) e aí ficarem retidos, até que os pais decidam deixar que participem em CD - contrariando a apregoada sensibilidade do Sr. Ministro da Educação quanto à discriminação dos jovens que por qualquer motivo (coitadinhos) fiquem retidos no ano lectivo. Parafraseando o Fernando Pessa: “E esta, hein?!”.
Curiosamente, na documentação que me/nos foi apresentada, em jeito de conclusão, refere-se ainda que urge legislar no sentido de eliminar totalmente a acção dos pais junto da escola, naquilo que contraria a intenção educativa do Estado sobre os nossos filhos. Parece que ainda há por ali uma brecha, particularmente, na obediência que os filhos devem aos pais e nas sanções a aplicar aos pais que não alinhem com o sistema. Profundamente lamentável!
Recentemente alguém disse: “Filhos do Estado, NÃO!” – E EU SUBSCREVO.
Pois bem, Exmo. Senhor Secretário de Estado, desde já deve ficar a saber que, pelas obrigações e direitos que me competem enquanto pai, estarei à altura das minhas responsabilidades - pelo bem dos meus filhos, pelos direitos dos pais e pela liberdade das famílias.
Creia-me verdadeiramente agradecido.
Brufe VNF, 01 de Março de 2020
Artur Mesquita Guimarães
CC 6592742 7ZY4
Obs.: esta carta poderia ser fechada, mas optei por que fosse aberta porque certamente dá conta do grito silencioso de muitos pais que, por medo e/ou por ameaças, ficam inibidos de exercer a sua vontade em liberdade, junto da escola dos seus filhos, no que se refere a este assunto.
a) Ambos os meus filhos obtiveram a média de 5 valores no ano transacto e, no registo de avaliação do 3º período, em apreciação global de cada um pode ler-se: “aluno empenhado, interessado e responsável” e “aluno muito interessado, empenhado e participativo. É bastante responsável”


8 comentários:

Carla Mendonça disse...

Enquanto professora e enquanto "representante da educação" numa CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens), parece-me que houve uma efetiva falta de comunicação entre "pais" e "escola" bem como a ausência de um elemento que pudesse servir de mediador para o esclarecimento desta questão. A Escola está cada vez mais aberta ao diálogo e os pais/enc.de educação/ representantes de facto são cada vez mais chamados a participar, até a dinamizar o espaço de 'Cidadania e desenvolvimento'.

Helena Araújo disse...

Carla, a sensação que tenho é que o pai não estava interessado em diálogo. Pura e simplesmente não aceita a existência desta disciplina, e para impor a sua vontade chegou ao ponto de usar os próprios filhos.

LPA disse...

Disposição para diálogo haveria se o Ministério da Educação tornasse esta disciplina opcional. Como não o é, parece-me que quem não quer diálogo é o ME.

Helena Araújo disse...

Tornar a disciplina de Cidadania opcional não seria diálogo, seria cedência a pressões de uma margem mais conservadora da sociedade e demissão da Escola da sua obrigação de contribuir para a criação de uma comunidade democrática sólida.
Parto do princípio que o problema é a Educação Sexual (já que não consigo conceber que alguém afirme que os outros temas - media, educação ambiental, literacia financeira, bem-estar animal, segurança rodoviária, etc. - devem ser do exclusivo âmbito das famílias). Qual é, concretamente, o problema com a Educação Sexual? O que é que temem que a Escola ensine aos alunos que seja tão nocivo para o desenvolvimento deles, e que seja impossível aos pais, em casa, corrigir? Têm medo de quê, concretamente?

Carla Mendonça disse...

Pois, Helena, também tenho essa sensação, pela leitura da carta.

Isabel disse...

Não conheço o caso,e por isso vou comentar pelo que li aqui, mas porque é que este pai não põe os filhos numa escola particular? Aí certamente já pode escolher.
A escola pública é para todos, não é para uns em particular. Algumas pessoas só vêem o umbiguinho delas! Não há paciência!

Boa semana.

Helena Araújo disse...

Isabel, pode dar-se o caso de não ter dinheiro para pagar escola privada.
Mas parece-me que é antes de mais uma questão ideológica: ele entende que o Estado está a abusar do seu poder quando decide que certos temas devem ser tratados também na Escola.
Para este pai, há temas que só devem ser falados em família. E para impor a sua opinião ao Estado, escolheu usar os filhos para fazer chantagem. Um abuso claro do seu poder como pai.

Isabel disse...

Já me fui informar sobre o caso e para mim é um assunto tão pateta, que não tem discussão. Este pai não deve ter mais nada que fazer.

Enfim...