26 junho 2020

estuda!

"Estuda!", disseram-me. E deram-me este texto do Pedro Cardim, publicado no Expresso.
Fui estudar. E descobri que afinal andava muito enganada a respeito do Padre António Vieira e da sua defesa dos indígenas.

Cito:
"Depois de consolidarem o seu domínio sobre as primeiras parcelas de terra, as autoridades portuguesas, seculares e religiosas, definiram a forma como iriam lidar com os autóctones da América. Quanto aos indígenas que foram submetidos pelos portugueses, as autoridades coloniais trataram-nos como miserabile personae, como uma espécie de crianças ou de pessoas desprovidas de autonomia e de autossuficiência. Foram vistos como seres que careciam da tutela dos colonizadores, acabando por ser reduzidos a uma condição de menoridade, cívica, jurídica e política. No que respeita aos muitos povos indígenas que viviam nas vastas áreas que escapavam ao controlo dos conquistadores e que contra eles resistiam, foram encarados como "selvagens", "rebeldes" e inimigos."

"Não há dúvida de que, ao longo da sua vida, Vieira se destacou na defesa de certos povos indígenas e denunciou alguns abusos dos colonos. Contudo, é preciso notar que tais denúncias foram quase sempre uma boa ocasião – política – para Vieira reivindicar que, na relação entre colonos e indígenas, a tutora e a intermediária privilegiada, ou mesmo exclusiva, deveria ser a Companhia de Jesus, a ordem à qual ele pertencia.
A par disso, não se pode esquecer que, em vários momentos, o mesmo Vieira apelou às forças portuguesas para que atacassem e submetessem, por vezes com muita violência, os ameríndios que resistiam à invasão das suas terras, ou que recusavam o catolicismo. Aliás, e à semelhança dos seus contemporâneos, Vieira usou termos como "gentio bárbaro" ou "selvagem" para denominar os indígenas que continuavam a resistir contra os portugueses. Tais palavras, como se sabe, estavam carregadas de preconceitos a respeito dos seres humanos assim designados.
Tudo isto é factual, baseia-se na documentação existente e está plenamente demonstrado pelos estudos dos últimos trinta anos."


"Estuda!", disseram-me outra vez. E deram-me este texto de Pedro Calafate, publicado no DN, que dá uma perspectiva muito diferente da do artigo anterior. Sugiro que leiam aqui, porque vale muito a pena.

Mas há um ponto comum a ambos os textos: o boneco escolhido em 2017 para simbolizar o Padre António Vieira será ou uma mentira (a crer no primeiro texto, que refuta a sua fama de protector dos indígenas) ou uma escolha completamente à margem do que é importante naquela figura histórica (a crer no segundo texto).
O que me incomoda mais nesta história: já estivemos mais adiantados nesta coisa de homenagens. Repito-me: veja-se o D. Sebastião de Lagos, que já tem meio século. Este tipo de representação é um retrocesso grosseiro e empobrecedor. Da próxima vez, peçam ao Cabrita Reis - ele pespega meia dúzia de paralelipípedos de betão no meio da praça, e cada um interpreta como lhe apetecer, e até aonde a sua própria ignorância lho permitir.
Assim já ninguém se zanga, e o Padre António Vieira tem a sua homenagem numa praça de Lisboa.

(Agora alembrou-me que se podiam fazer os paralelipípedos definidos apenas pelas arestas em ferro, e com pontos de intersecção: intersecção de mundos, porque ninguém saiu o mesmo daquelas andanças.
Ora então: deixem-me ser eu a fazer a homenagem! Faço metade do preço do Cabrita Reis. Pronto, está bem, faço metade do preço do autor do boneco que levanta a cruz acima dos indígenas infantilizados. E não se fala mais nisso.)


2 comentários:

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

Não posso concordar.

Borrar uma estátua é, acima de tudo, impor a opinião de quem borra ao resto do Mundo.

Não há pior tirania e arrogância, ao nível individual.

E discutir uma estátua não pode vir nunca a propósito de um acto de vandalismo cobarde e de prepotência individual CONTRA o poder democrático que legalmente a erigiu, seja em nome daquilo que for.

Muito menos ainda discutir a vida e a Obra do Padre António Vieira a propósito deste disparate...

Quem assim "exprime" as suas opiniões faz lembrar aqueles que, embora talvez não pintando muitas estátuas, queimavam os livros e também as pessoas de que não gostavam.

Ora bolas, nós pretendemos estar um pouco acima disso.

Helena Araújo disse...

Será que este comentário pertence a outro post, onde falo em derrubar estátuas?


Por partes, a partir do teu comentário:

1. Borrar uma estátua é, acima de tudo, impor a opinião de quem borra ao resto do Mundo.
É, sim. Por outro lado, aquela estátua concreta, erigida em 2017, também é impor uma opinião (retrógrada) ao resto do mundo. Pior ainda: exibi-la como se fosse a opiniao consensual dos portugueses.

2. Não há pior tirania e arrogância, ao nível individual.
É a resposta à tirania do poder que ali ergueu aquela estátua.
(Se o presidente da junta da tua freguesia erguesse na praça em frente à tua casa uma estátua do Salazar, tu ficavas calado e quieto?)

3. E discutir uma estátua não pode vir nunca a propósito de um acto de vandalismo cobarde e de prepotência individual CONTRA o poder democrático que legalmente a erigiu, seja em nome daquilo que for.
Tens razão. Devia ter vindo antes. Devia ter havido diálogo, debate, escuta.
Este episódio serve como aviso para o "museu dos descobrimentos" e o "centro de informação do Estado Novo" em Santa Comba que tudo indica vir a ser um relicário do Salazar.
Se não houver debate prévio e criação de um mínimo de consenso, não vai haver paz social. Tenho a certeza que se não tivessem incluído indígenas infantilizados na estátua do Padre António Vieira ninguém teria reparado nela. Porque o problema não é o PAV, é o papel que na estátua se atribui aos indígenas.

4. Quem assim "exprime" as suas opiniões faz lembrar aqueles que, embora talvez não pintando muitas estátuas, queimavam os livros e também as pessoas de que não gostavam.
Num post anterior falei justamente dessa fogueira de livros, e do autor que pediu para que queimassem também os dele. Os objectos (os livros, as estátuas) não são sagrados. Às vezes há motivos para dar um sinal de que é preciso falar sobre aquilo que simbolizam.

Penso que o disse algures, num dos posts sobre este tema: vandalizar estátuas não devia tornar-se agora a norma do nosso tempo. Mas é importante que trabalhemos para o diálogo e o entendimento.
Esta estátua - tal como foi feita - não é uma homenagem, é um braço de ferro.
Braços de ferro no espaço público não são boa ideia.
O poder democrático que legalmente a erigiu devia pensar duas vezes sobre o que anda a fazer, porque nem tudo o que é legal é lícito, e nem tudo o que é ilegal (como borrar estátuas) é automaticamente reprovável.

Também num post anterior perguntava se não tinha sido possível fazer a revolução francesa a bem, em vez de passarem pelo massacre de tantas pessoas e pela vandalização de tantos bens culturais.

"A bem" é o conceito chave. Era bom que fôssemos capazes de começar a rever quem somos e o que queremos ser em termos de herança colonial, racismo, responsabilidade histórica, etc., sem ser preciso andar a borrar estátuas por aí.