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18 junho 2020

algumas provocações a propósito de estátuas - a luta contra o racismo



Santuários esventrados: nesta minha longa passagem pela Bretanha ainda não encontrei uma única igreja medieval cuja entrada não seja um testemunho trágico do desvario dos tempos. E pode dizer-se que, apesar de tudo, estas igrejas de santos apeados e flechas destruídas ainda tiveram sorte. Da Abadia de Saint-Mathieu, por exemplo, restam apenas algumas paredes. Mas o fenómeno não é apenas bretão. Na Borgonha, a Abadia de Cluny - importantíssimo centro religioso e cultural da Idade Média - teve a mesma má sorte que a de Saint-Mathieu: foi vendida a um particular que fez dela pedreira. Do imponente conjunto arquitectónico, praticamente só sobrou o seu lugar. Aconteceu no centro da Europa, há pouco mais de duzentos anos. 

Foi a Revolução Francesa, que se despenhou sobre a França com enorme violência, mas cujo resultado foi a implantação de um novo ideal de organização social, sintetizado no lema liberdade-igualdade-fraternidade.

Uma pessoa olha para aqueles nichos vazios, e pergunta-se em que é que os privilegiados do Antigo Regime estariam a pensar enquanto fruíam da sua douceur de vivre, alheios e insensíveis à situação incomportável em que o povo vivia. Não podiam ter chegado ao "liberté, égalité, fraternité" a bem?
Que ilusões e omissões permitiram a erupção de uma onda incontrolável de fanatismo que fez rolar tantas cabeças?

*

Pergunto-me se o derrube e a pichagem de estátuas que actualmente estão a ter lugar em vários países são sinal de que a História continua o seu curso, e de que nenhuma sociedade está ao abrigo de novos conflitos sociais e de revoluções - com todos os seus inevitáveis excessos.

Traçando um paralelo entre o movimento revolucionário actual e a Revolução Francesa, pergunto: será que o "comam brioches" do nosso século é a ignorância e o desprezo com que se responde aos que alertam para as "microagressões", o "privilégio branco", o "racismo estrutural"? Será que nos salões de Luís XVI também comentariam "ai que maçada, hoje em dia não se pode dizer coisa nenhuma, que há sempre algum servo a sentir-se ofendido - cambada de snowflakes..."?

Mas divago. Este não é seguramente o limiar de uma revolução com o ímpeto da Revolução Francesa. Os oprimidos não são em número suficiente para lhe dar essa dimensão. O lugar da maioria nos "salões de Versalhes" continua cinicamente assegurado.
(De muito maior alcance, contudo, serão os conflitos quando a crise climática se abater em cheio sobre nós. Infelizmente, já não teremos de esperar muito para ver.)

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Lido algures:

Porque é que dizem "o racismo que matou George Floyd é terrível, mas é inadmissível que os manifestantes ataquem e destruam propriedade privada e monumentos, e temos de tomar medidas imediatas contra isso", em vez de dizer "o ataque e a destruição da propriedade privada e dos monumentos é terrível, mas o racismo que matou George Floyd é inadmissível, e temos de tomar medidas imediatas contra isso"?

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(…) When they say « why do you burn your community, why do you burn down your own neighborhood? » It’s not ours! We don’t own anything! We don’t own anything! There is a social contract that we all have that if you steal or if I steal, then, the person who is authority comes in and they fix the situation, but the person who fixes the situation is KILLING US! So the social contract is broken! And if the social contract is broken why the fuck do I give a shit about burning your fucking football Hall of Fame, about burning a fucking Target. YOU BROKE THE CONTRACT! YOU’RE KILLING US ON THE STREETS AND DON’T GIVE A FUCK! You broke the contract, WE FOR 400 YEARS PLAYED YOUR GAMES AND BUILT YOUR WEALTH! YOU BROKE THE CONTRACT WHEN WE BUILT OUR WEALTH AGAIN ON OUR OWN BY OUR BOOTSTRAPS IN TULSA AND YOU DROPPED BOMBS ON US! WHEN WE BUILT IT AGAIN IN ROSEWOOD AND YOU CAME IN AND SLAUGHTERED US! YOU BROKE THE CONTRACT SO FUCK YOUR TARGET! FUCK YOUR HALL OF FAME! As far as I’m concerned they could burn this bitch to the ground and it still wouldn’t be enough and they are lucky that what black people are looking for is equality and not revenge!

(Repare-se nos últimos momentos do vídeo: quando uma Kimberley Jones emocionalmente exausta desaba nos braços de uma amiga)

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Há exageros na actual luta para nos alertar para o racismo estrutural da nossa sociedade? Há. Muitos, e alguns bem graves, porque abalam valores básicos das sociedades modernas e democráticas - nomeadamente a liberdade de expressão e artística.

Compreendo a preocupação de quem fala em ataque à cultura, à liberdade de pensamento e de expressão. Compreendo quem teme que em breve se comece a queimar livros, e cita Heinrich Heine: «Não era senão um prelúdio; onde se queimam livros, terminar-se-á por queimar pessoas».

Compreendo tudo isso, mas: o problema é que já estão a queimar as pessoas. Nos EUA, a média anual dos últimos cinco anos é de cerca de mil assassínios de base racista perpetrados por polícias. Mil pessoas, anos após ano. As pessoas já estão a arder - de facto, estão a arder há mais de quatro séculos - mas a maioria de pele branca não repara, entretida que está a proteger os ilimites da sua liberdade de expressão. Não repara nem quer reparar que muitos dos seus livros, dos seus filmes, das suas obras de arte e das suas palavras são uma humilhação constante para um determinado grupo, reforçam os sentimentos de superioridade e os preconceitos da maioria contra uma minoria, e contribuem para perpetuar uma ordem racista na sociedade.

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De um lado temos: o assassínio de George Floyd (um polícia a matar, três a ver e a manter a ordem pública). O assassínio de Philando Castile, em frente à sua filha de 4 anos. O assassínio de Ahmaud Arbery: um linchamento no ano da graça de 2021. O cinismo desta resposta de um branco a um trabalhador negro: "You know what? You’re probably right. You deserve more. But why would I ever give it to you, when I can get you for this?"

Do outro lado temos: os privilegiados da ordem social que pratica a opressão dos outros. A defender os seus livros e os seus filmes, as suas estátuas e a sua versão da História, os seus símbolos, as suas coisas, as suas liberdades, a sua douceur de vivre.

Em vez de começar hoje mesmo a reconhecer e a corrigir o imenso crime perpetrado dia após dia durante mais de quatro séculos contra os escravos africanos e os seus descendentes, agitam a bandeira dos seus direitos e das suas liberdades. Os seus direitos antes dos direitos dos outros.  
(Volta, Maria Antonieta, estás perdoada.)

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Pergunto: o facto de sabermos
 que em 2020  Shola Richards só se atreve a passear no seu bairro na companhia das filhas e do cão, porque se passeasse sozinho os brancos daquela rua iam sentir-se ameaçados e isso bastaria para o assassinarem, não nos provoca uma imensa vergonha e não nos impele a tomar todas as medidas possíveis para corrigir essa situação?

Pessoalmente, sinto uma vergonha profunda - e é essa vergonha que me impede de chamar ridículas às acções contra o Tom Sawyer, o Mocking Bird e o Gone With the Wind.

No dia em que Shola Richards puder passear sossegadamente na sua própria rua sem que os vizinhos o vejam automaticamente como um desigual e como um vulto ameaçador, provavelmente também esses filmes e esses livros serão deixados em paz.

Até lá, teremos de ouvir, debater, alertar, educar, e fazer as concessões necessárias para tornar o mundo igualmente respirável para todos.

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Provoco: se, por cada negro assassinado, a sociedade fosse castigada com a eliminação total de um livro ou um filme de fundo racista, quanto tempo levaria até acabarem os assassínios de pessoas motivados pela cor da pele?
(Não, não estou a propor que queimem todas as cópias de Gone With the Wind como retaliação pelo assassínio de George Floyd. Estou apenas a dizer: se doesse à maioria mesmo a sério, tão a sério como dói à minoria, o problema já tinha sido resolvido há muito.)

*

Quando Oskar Maria Graf se deu conta de que os seus livros não faziam parte da lista negra dos nazis, não tinham sido atirados às fogueiras, e, pelo contrário, eram recomendados pelo regime, escreveu: "O conjunto da minha vida e da minha obra dá-me o direito de exigir que entreguem os meus livros às imaculadas chamas da pira, em vez de caírem nas mãos sujas de sangue e nos cérebros pútridos do bando de assassinos de uniforme castanho."

"Queimem os meus livros!": um grito de decência e de defesa dos mais altos valores.

Nos tempos que correm, ninguém pediria tanto. Basta assinalar o conteúdo racista de um filme, trocar no livro uma palavra estigmatizante e insultuosa pela sua inicial com asterisco, escrever um prefácio crítico (sim, há muita gente de bem que precisa que lhe façam um desenho), mudar uns quantos nomes de ruas e deixar o registo da razão da troca, levar certas estátuas para o museu a que têm direito e onde serão devidamente contextualizadas.

*

É lamentável que se tenha chegado a este ponto de exagero e violência, mas não podemos, em consciência, dizer que não estávamos à espera disto. A História já nos deu muitas lições sobre este tema. Por exemplo, e fazendo a ponte para o início deste post: se Luís XVI tivesse estado muito mais atento e aberto ao clamor do tempo, provavelmente ainda hoje tinha o crânio em cima das omoplatas. 

Melhor seria mudar de vida, e começar hoje mesmo a reconhecer o mal que fizemos e fazemos às minorias, e a unir esforços para corrigir o que tem de ser corrigido urgentemente, em vez de nos enterrarmos em trincheiras de "nós" e "eles", que só nos conduzirão ainda mais depressa para tempos desvairados.


6 comentários:

  1. Na minha opinião não é a derrubar estátuas, que fazem parte da história dos Países e do mundo, que se luta contra o maldito racismo.
    .
    Um dia feliz
    Cumprimentos

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  2. Oi boa tarde tudo bem? Aceita um seguirmos o blog do outro? Podemos fazer parceria entre os nossos blogs. https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1

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  3. É bom que quem luta pela Justiça só a procure e não à Vingança. Vale a pena lembrar que a guilhotina não foi apenas o destino de Louis XVI, um homem fraco e bom, como dizia Camus. Foi também o destino de Robespierre.

    O mesmo da I República Francesa, que foi pioneira na abolição da escravatura... O seu general Dumas (pai do escritor) ainda é o oficial negro de mais alta patente num exército da Europa...

    E cabe ainda lembrar esse outro coveiro da Revolução, Napoleão Bonaparte, que não caiu sem deixar a Europa em chamas e semear o nacionalismo, que não apenas concedeu liberdade aos povos deste continente, como fez com que os homens fizessem a guerra até aos dois suicídios colectivos de 1914-1918 e 1939-1945... E que este espectro ainda hoje nos atormenta, muito depois da morte do comunismo...

    Já sei que me citarão Brecht, que dizia que 'Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem'. Mas valerá lembrar as lições da História e de como combates pela Justiça se transformaram em banhos de sangue, arrastando as antigas vítimas bem como os seus algozes.

    Camus, sempre o mesmo pessimista, dizia dos atentados que ocorriam na Argélia, que se tivesse que escolher entre a Justiça e a sua Mãe, aí residente, escolheria a sua Mãe...

    Felizmente, até agora pelo menos, nada diz deste combate que as vítimas não levem estas lições em conta e não se esqueçam das palavras de Martin Luther King, de que o ódio não pode vencer o ódio...

    E se uma quantas estátuas, algumas aliás bem feias, forem parar ao fundo de rios, não haverá por aí muito a lamentar...

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  4. Jaime, por isso mesmo perguntava logo no início do post se não podiam ter chegado ao liberté-égalité-fraternité a bem, em vez de se entricheirarem em Versalhes insensíveis à raiva surda que estava a crescer.

    Vejo alguns paralelos entre os privilegiados do Antigo Regime e os brancos que hoje em dia continuam a não se dar conta da situação de miséria a que o racismo estrutural condena os negros.

    É óbvio que esta minoria não tem o poder de lutar pelos seus direitos fazendo uma revolução desvairada como a francesa. Mas a minha questão não é se eles devem conquistar a justiça sem cair no extremo da vingança. A minha questão é: porque é que nós não fazemos muito mais para reduzir a injustiça que os vitima?

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  5. A responsabilidade de correção de uma injustiça está com quem a perpetra ou com quem por omissão a permite, bem entendido.

    Está sobretudo nas mãos de quem tem o privilégio alterar este estado de coisas.

    E também não acho que se possa agora fazer uma revolução desvairada como a Francesa.

    Mas foi essa a imagem que a Helena usou e eu lembrei as injustiças trazidas por ela...

    Mas quem protesta caminha sobre uma linha fina. A maioria dos americanos reconhece agora que o racismo estrutural é a fonte dos problemas e que o tratamento dos negros pela Polícia é um mero sintoma. Mas para que essa maioria se mantenha, é necessário que os protestos se mantenham dentro do limite do legal e aceitável (o que tem sido a regra).

    Não é sequer uma questão moral, é uma questão de estratégia... A Esquerda Americana tem tido pulsões suicidárias anteriores. Vale bem a pena ler este texto de Sheri Bernan a este propósito:

    https://www.socialeurope.eu/protests-the-left-and-the-power-of-democracy

    A revolta do Maio de 68, para citar um exemplo recente, teve consequências a longo prazo nos costumes e na própria condição das mulheres e das minorias (muito embora tivesse ocorrido graças a uma pulsão individualista que abriu depois caminho ao neoliberalismo).

    Mas a curto prazo, De Gaulle ganhou em toda a linha... E De Gaulle, mau grado as tendências cesaristas, era um democrata. Trump não o é...

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