14 maio 2020

"dogma"

Durante muito tempo pensei que #dogmas eram pedaços da doutrina decididos há mil anos, quando ainda era preciso fazer ajustes ao edifício católico. Por isso fiquei muito surpreendida ao dar-me conta de que o dogma da Imaculada Conceição só foi estabelecido em 1854. Ora, isso é quase na altura em que os meus bisavós estavam para nascer, ou seja: ali à esquina da minha própria história.

Sim: em 1854 a teologia da Igreja Católica ainda andava a discutir se a mãe de Jesus tinha nascido sem mácula. E não pensem - como outras pessoas que eu cá sei... - que com isso quer dizer que também a mãe dela, aquela santa mulher, não andou a fazer malcriadices com o santo do seu marido. Não, senhores. Imaculada Conceição quer apenas dizer que Maria nasceu, ao contrário de todos nós, sem pecado original. Porque parecia mal o filho de Deus encarnar no corpo de uma mulher em pecado. Involuntário, pois claro, porque já vimos ao mundo com ele, mas pecado na mesma.

É uma pena decidirem estas coisas sem me perguntarem a opinião. Dizia-lhes logo: tirem daí a ideia, porque essa jogada é desmoralizadora: se tiram o pecado a Maria, dizendo que era tão pura que até foi concebida sem pecado original, afastam-na dos comuns mortais, transformam-na numa extraterrestre mais para lá que para cá. Deixa de ser uma de nós, deixa de ser como nós: não precisa de se debater quotidianamente - como nós - para se erguer acima da lama da qual nasceu. E criam um problema à figura de Jesus Cristo, que passa a ser humano só por parte dos avós maternos. 

Como se não bastasse, em 1870 o Vaticano ainda se saiu com o dogma da infalibilidade papal, que quer dizer: em caso de dúvida, o papa tem a última palavra.

Mas o que é realmente grave é isto: no século XIX, quando a classe operária - um grupo cada vez maior de pessoas a viver em terríveis condições decorrentes da revolução industrial - se estava a afastar a passos largos da Igreja, em Roma discutiam-se bizantinices como o pecado original da mãe de Jesus e os critérios para estabelecer as verdades da Fé naquelas partes mais complicadas que os mandamentos de Cristo.

Será que o Vaticano aprendeu com o estrondoso falhanço junto da classe operária do século XIX, e, já agora, com o falhanço junto da classe intelectual do século XVIII? Pois parece que não: em 1950, cinco anos depois de Auschwitz, e pouco antes de eu nascer, ainda se saíram com o dogma da ascensão de Maria ao céu não apenas em alma, mas também de corpinho bem feito.

Mas escusam de se rir: por causa disso têm um feriado em Agosto. Respeitinho, vá.

(De repente lembrei-me de um padre da minha comunidade, a da Serra do Pilar, a desancar o pessoal que enchia a igreja no dia 15 de Agosto: "Porque é que nunca vos vejo aqui ao domingo? Que religião é a vossa, que só vos traz à missa neste dia?")


2 comentários:

Lucy disse...

ai...

Lúcio Ferro disse...

Delicioso. Acrescento apenas o seguinte: vamos supor que, de facto, jesus foi concebido sem pecado, que não houve truca truca. Vamos supor que foi o espírito santo que botou a sementinha no ventre de Maria, até que é plausível, pelo menos a acreditar em tantos quanto nisso acreditam. Mas, pelo menos enquanto homem, isto levanta-me (calma, que as mentes impuras não levem o "levantamento" para outros âmbitos) dúvidas sérias: então josé aceitou de boa fé ser um corno manso? Um corno manso ainda por cima de uma entidade qualquer que lhe deixou o filho nos braços e se pôs ao fresco? Um ser a quem ele nem sequer podia chegar e dizer: olha lá pá, que história é essa de me andares a pôr os cornos? Pois, repito, enquanto homem, essa história ofende a minha masculinidade, é inaceitável.