13 fevereiro 2020

faça-se então um desenho (2)


Quanto anti-semitismo há nesta caricatura?

Uma representação de Netanyahu que cita os estereótipos dos desenhos nazis anti-semitas, com uma braçadeira onde se vê a estrela de David em vez da bandeira israelita (ou seja, liga esta violência aos judeus em geral, em vez de a ligar a Israel), a meter num forno crematório um caixão coberto com a bandeira palestiniana, mesmo por baixo da inscrição "Arbeit macht frei".

A mensagem parece clara: "der Jude" está a fazer aos palestinianos o que a Alemanha nazi lhe fez a ele.

A intenção do cartoon era chamar a atenção para o sofrimento do
povo palestiniano, vítima de uma ocupação injusta, abusiva, brutal e cada vez mais invasiva. Mas falha estrondosamente: porque exagera de tal modo a situação actual em Israel/Palestina que perde toda a credibilidade, porque relativiza o que aconteceu em Auschwitz e porque insulta a memória das vítimas do Holocausto.

Seja intencional ou por descuido do cartunista, parece-me que seria difícil conseguir  mais anti-semitismo que o que está patente neste cartoon. 

Alguns apontamentos soltos:

1. "Der Jude": ao escolher representar o primeiro-ministro israelita na tradição do anti-semitismo nazi, o caricaturista está a entrar perigosamente no terreno ideológico que reduz todos os judeus à figura ameaçadora do "judeu maligno" - "der Jude". É esta a crítica mais imediata à caricatura: tem de ser possível criticar a actuação de Israel sem usar - e reforçar! - o anti-semitismo de que as pessoas judaicas foram e continuam a ser vítimas.

2. "Arbeit macht frei": o cartoon compara o primeiro ministro de Israel a Hitler, e o sofrimento do povo palestiniano ao sofrimento do povo judeu na Alemanha nazi. Mas qual é a base factual que justifica a imagem de um "Holocausto dos palestinianos"?

Os números são estes (agradeço que corrijam se estiverem errados):

População judaica na Europa em 1939: 9,5 milhões
População judaica na Europa em 1945: 3,5 milhões
Assassinados na máquina do genocídio: 6 milhões (63% da população)

População árabe na Palestina em 1922: 670.000
População árabe na Palestina em 1945: 1.200.000
População árabe na Palestina em 2005: 4.420.000
Vítimas (palestinianas e israelitas) da guerra de ocupação israelita de 1948 a 2009: 14.500 (1,2% da população palestiniana em 1945)


Israel está a fazer uma guerra de ocupação contra os palestinianos, mas não instalou uma máquina de extermínio para apagar esse povo da face da terra. Não tem câmaras de gás. Não faz listas de nomes para deportar pessoas para campos de concentração onde se espera que morram de fome, doenças e exaustão. Não há fronteiras fechadas para impedir os palestinianos de escaparem à máquina da morte. Mesmo o horroroso gueto que é Gaza está muito longe de se comparar ao gueto de Varsóvia: em Gaza há subalimentação, mas não há crianças a morrer literalmente de fome pelas ruas; a densidade populacional em Gaza é de 5.000 habitantes/m2 (12.000/km2 na cidade de Gaza) contra os 146.000/m2 do gueto de Varsóvia.

3. Se as realidades são tão diferentes, porque é que chamam "Holocausto" à situação dos palestinianos sob ocupação israelita?

Mais: porque é que só se usa a palavra Holocausto quando o agressor é Israel? O napalm no Vietname não é holocausto, a perseguição aos Royinga, aos Yazidi ou aos Uigures não são holocausto, o genocídio dos Tutsi (um milhão em quatro meses) não é holocausto.

Arrisco uma hipótese: alguns caem na armadilha de usar a tragédia do povo palestiniano para atingir cruel e certeiramente todo o povo judeu no seu nervo mais sensível. E para poder ferir sadicamente o povo judeu, banaliza-se deliberadamente a palavra "Holocausto", aplicando-a a uma guerra de ocupação que causou 14.500 vítimas em 75 anos.

4. Um requinte de cinismo: europeus que, para agredir e humilhar o povo judeu, se servem de um crime terrível contra os judeus perpetrado por europeus.

5. Um requinte de sadismo: equiparar genocídio a guerra de ocupação, retirando peso simbólico àquele. 

6. Há quem argumente que esta menção a Auschwitz serve para lembrar a Israel de onde veio, e que não deve fazer aos outros o que lhe fizeram a eles. Para além de estar muito longe de ser o que lhe fizeram a eles, e para além de esta acusação esquecer os bombistas suicidas e os ataques que são lançados de Gaza contra Israel, convém ter presente que nenhum judeu em Israel precisa que lhe lembrem de onde veio. Qualquer um deles sabe muito bem, e muito melhor do que nós. Por exemplo, Amnon Weinstein, o luthier proprietário dos Violins of Hope, contou que à mesa da sua casa se sentavam ele, o pai, a mãe, e quatrocentos parentes assassinados no Holocausto. Amnon Weinstein está longe de ser um caso único. Por isso, dizer a esta gente que se deve lembrar do Holocausto é sinal de inacreditável arrogância e cinismo da nossa parte.

7. Arrogância e cinismo - e uma enorme falta de vergonha.
Perguntemos: porque é que os palestinianos estão a viver sob ocupação?
Porque os judeus europeus não encontraram um porto seguro em nenhum país da Europa. Porque a Reconquista cristã destruiu a situação de coexistência pacífica de que gozavam em El Andaluz. Porque os Reis Católicos e o seu Édito de Alhambra puseram em fuga mais de 100.000 judeus. Porque a Inquisição em Portugal e na Espanha os perseguiu sem dó nem piedade. Porque no massacre de Lisboa de 1506 uma população enfurecida sem razão matou mais de quatro mil. Porque ao longo de muitos séculos foram vítimas de pogroms em toda a Europa. Porque em meados do século XX a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos do mundo, pôs em prática um plano frio e eficiente de extermínio dos judeus europeus, para o qual contou com o apoio activo ou pelo menos com a passividade de grande número de outros países da Europa.

O sofrimento do povo palestiniano resultante da implantação do Estado de Israel no seu território é uma consequência directa do anti-semitismo dos europeus.

8. De cada vez que um Vasco Gargalo faz um cartoon como este, entre os judeus reforça-se a convicção de que o único lugar do planeta onde podem viver em relativa segurança é Israel, e que têm de lutar com toda a força para manter esse país e garantir a sua sustentabilidade - nomeadamente em termos de água. Pelo que o resultado imediato de um cartoon que usa uma linguagem anti-semita para criticar Israel é o agravamento da situação dos palestinianos, considerados obstáculos à segurança e à sustentabilidade de Israel.

Se era para ajudar o povo palestiniano, mais valia ao Vasco Gargalo fazer desenhos sobre outros temas. Pelo menos não estragava ainda mais.



1 comentário:

Jaime Santos disse...

Uma mais correta descrição daquilo que se passa no conflito Israel/Palestina é que se trata de uma acção de ocupação colonial praticada pelo Estado de Israel em áreas que o Direito Internacional não reconhece como suas, comparável porventura àquelas que os povos europeus praticaram na Ásia e África durante os séculos XIX e XX.

O estatuto dos judeus enquanto vítimas do Holocausto, o maior genocídio da História, não concede naturalmente aos israelitas nenhuma espécie de salvo-conduto moral para prosseguirem políticas manifestamente injustas e até criminosas, mas os atos praticados também não podem ser objeto de qualquer equivalência com os crimes monstruosos cometidos pelos nazis.

Agora, parece-me evidente que a prossecução de tais políticas torna não apenas Israel enquanto Estado Judaico, mas também o próprio Povo Judeu, suscetível a todo o tipo de acusações, a maioria das quais injustas, e às tais falsas equivalências que refere.

A melhor forma que Israel teria de desarmar os anti-semitas seria ser fiel à sua promessa de ser uma Luz entre as Nações.

Já sei que me irão dizer que o Estado Judaico não é diferente de outros Estados onde os altos princípios são as mais das vezes substituídos pela dura realidade da 'Real-Politik', mas se a tradição intelectual judaica na diáspora sempre se bateu pela emancipação dos homens em geral e dos judeus em particular, parece-me que estará bem na altura de a recuperar também na Terra de Israel em relação aos seus vizinhos...

A bem dos Palestianianos e a bem da viabilidade futura de Israel enquanto nação livre, democrática e justa...