19 fevereiro 2020

eutanásia

1.
Tenho muitas dúvidas sobre a eutanásia, que sintetizo nestes dois tipos de preocupação, de sinal contrário uma da outra:
- Será que as pessoas não se vão sentir pressionadas a pedir a morte para não pesarem aos familiares ou à sociedade que lhes chama "peste grisalha"?
- Que sentido faz, em nome do valor da vida, obrigar alguém a permanecer vivo muito para além da dignidade mínima que essa pessoa sente ser um direito seu?

Como hoje acordei salomónica (cof cof) proponho que, se estamos realmente preocupados com a vida das pessoas que querem morrer, seja acrescentada à proposta de lei esta alínea absolutamente corrosiva: 

(*) Perante um pedido para morrer, é imediatamente nomeado um assistente social para:
1. falar com todas as pessoas indicadas pelo paciente (familiares, amigos, pessoal médico, etc.) perguntando-lhes o que pensam daquele pedido, e o que estão a fazer e se comprometem a fazer de futuro para que essa pessoa prefira continuar viva;
2. verificar regularmente se as pessoas estão a desempenhar de forma satisfatória aquilo que se comprometeram a fazer.


Sim, sim, bem sei que esta alínea tem muito que se lhe diga - de facto, é apenas uma provocação.
Mas teria a vantagem de separar o trigo do joio: porque nos confronta com a nossa própria hipocrisia.


2.
Falando agora muito a sério, partilho um texto de Rui Mota Cardoso que nos dá bom material para pensar:

DECIDIR SOBRE O FINAL DA VIDA

Debate promovido pelo Conselho Nacinal de Ética para as Ciências da Vida, realizado no Porto a 5 de Julho de 2017 com a participação de Michel Renaud, Rui Mota Cardoso,João Semedo e Paulo Rangel

PONDERAR A OPÇÃO DE UMA BOA MORTE
rmc
Quando o doente vivencia um corpo e uma mente perturbados - a que os médicos chamam doença, e experiencia os sofrimentos que a perturbação acarreta - e a que os médicos chamam sintoma, possuído pelo desalento e a impotência, sente-se coagido a pedir ajuda. E se há alguém capacitado para o ajudar, a situação fundamental do ato médico encontra aí a sua ontologia e nobreza. O ato médico é, na sua origem, uma relação de ajuda.
O doente procura ajuda para recuperar da ameaça que a perturbação desencadeia que não é apenas a sua integridade física ( também a psicológica, social, moral e espiritual) mas também com igual acuidade, a sua segurança, o auto e heterocontrolo, a autonomia e a autodeterminação, a capacidade de decisão e livre arbítrio, a dignidade e tantas vezes até, a identidade.
É esta ajuda humana que o doente solicita e a singularidade do ato médico reside nesta forma única de ajudar sem lesar – e antes proteger e fomentar – a autonomia, a autodeminação, o livre arbítrio e a dignidade do outro, sem paternalismo nem autoritarismo, mas com calor afetivo e interesse desinteressado.
E quanto mais grave, prolongada, progressiva e irreversível for a doença, mais difícil e subtil se torna manter este comprometimento ético com aquele que espera do médico a ajuda para a luta que ele – e não o médico – porfia.

É nesta postura antropológica (von Weitzecker) que, enquanto médico, me interrogo sobre o tipo de decisões a tomar na assistência ao doente no seu final de vida.
Enumerarei algumas das minhas interrogações.
A autodeterminação é um dos princípios fundamentais dos Direitos Humanos (art 1º da Convenção Internacional sobre Direitos Económicos, sociais e Culturais). É, em última instância, o sustentáculo da individualidade e do respeito que ela impõe.
A autodeterminação significa autonomia, autocontrolo e livre arbítrio.
E a autonomia do doente é hoje um direito assegurado (Medical Professionalism in the New Millennium: A Physician Charter).

Então, pergunto-me:
- Até onde vai o respeito pela autonomia do doente?
- Quando e porquê podemos negar autonomia ao doente?
- Pode alguém, pessoa ou instituição, decidir por ele o caminho da sua vida?
- Pode o indivíduo partir na defesa da autonomia do seu pensamento – que todo e qualquer indivíduo deve possuir – e optar por uma morte assistida?
- Até onde lhe pode ser respeitado o seu livre arbítrio?
A Dignidade da Pessoa Humana fundamenta a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o sistema dos direitos fundamentais da Constituição Portuguesa repousa na dignidade da pessoa humana, quando logo no art. 1º proclama a Pessoa, fundamento e fim da sociedade e do Estado.
E Jorge Miranda acrescenta: “Os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas. (…) A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta”.
Cito Kant: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.”
E pergunto:
- A dignidade humana é um princípio ou um fim? Um direito ou um atributo?
-. É a dignidade humana algo que transcende a dignidade de cada homem e mulher?
- Não provém a dignidade de cada mulher ou homem da sua radical singularidade, resultado único de um corpo verbalizado e de uma mente encarnada num tempo e num espaço cultural único e irrepetível?
- Em que momento da progressão da doença a dignidade é atingida de morte?
- E até onde pode ir o respeito por esta singularidade e sua dignidade?
- Desde que, ciente da sua escolha, em que momento do final da sua vida, perde o doente o poder de ser digno?
- O princípio da dignidade (e o da autodeterminação) inclui ou não a dignidade (e a autodeterminação) no último estágio, o da morte?
- À questão sobre se a morte assistida é uma indignidade quem deve dar resposta: o direito ou o próprio?
- Pode ou não cada mulher ou homem decidir sobre o que é digno para a sua existência?
Mas também a garantia do Direito à Vida vem expressa no art. 4º da declaração Universal dos Direitos Humanos, num aparente conflito com as garantias e direitos anteriores:
“Toda pessoa tem direito ao respeito pela sua vida. Esse direito deve ser protegido por lei, em geral, desde o momento da conceção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Responder a questões que possam ser levantadas sobre o Direito à Vida, julgo depender das respostas dadas a duas outras questões anteriores, a saber:
- Qual é o sentido da vida e o que é uma vida que faz sentido?
- Quem define o sentido da vida para além de cada pessoa viva?
Michel Henri, porventura o último dos fenomenologistas, fala assim do sentido da vida:
“A vida se quer a si mesma; quer, segundo o desejo de crescimento que a habita, de viver mais, sentir, compreender e amar mais. Esta felicidade de viver constitui a única finalidade da vida”.
Pergunto-me:
- O direito à vida é mais do que o direito a não ser morto?
- O direito à vida é mais do que o direito a uma vida digna e livre?
- É a vida um valor absoluto? Se o é, não é então um dever?
- O que é um direito indisponível?
- Todas as formas de vida podem ser consideradas vida?
- Uma vida vegetativa tem “desejo de crescimento que a habita, de viver mais, sentir, compreender e amar mais”?
- O conceito de morte cerebral não afirma a vida e a morte como algo mais de que um processo puramente biológico?
- Qual é a hierarquia dos valores: o valor da vida ou o valor da vida de cada pessoa, homem ou mulher?
- E o médico cuida da vida ou da vida de cada doente?
E é neste ponto que se encontram as maiores dificuldades. Falo do lado de cá do sofrimento do doente. Do lado do sofrimento do médico e da sua dignidade pessoal e profissional.
E do conflito bioético entre os princípios básicos da beneficência e da não malficiência (Beauchamp e Childress, 1979).
E pergunto-me:
- Ajudar a uma boa morte é um ato de beneficência ou de malficiência?
- E não ajudar, é um ato de beneficência ou de malficiência passiva?
São estas as questões que me coloco e que julgo merecerem reflexão quando se discute as decisões a tomar no fim da vida.
Pessoalmente gostaria de poder manter a minha autodeterminação e dignidade até mais não me ser possível, de poder ponderar a opção por uma boa morte e de encontrar alguém que tivesse a humana coragem de arrostar, na sua consciência, com as consequências morais de me ter ajudado.
Porto, 5 de Julho de 2017
Rui Mota Cardoso

1 comentário:

Jaime Santos disse...

O cuidado dos outros seres humanos, particularmente dos grandes enfermos, é sempre difícil, Helena Araújo. Para os familiares, para os cuidadores, para o Estado. Essa constatação não pode, claro, servir de desculpa para forçar quem se encontra nessas condições de fragilidade a optar por morrer.

Mas chamar a atenção para este facto desvia a atenções de um ponto que está bem patente no texto, muito embora escondido por detrás de considerações e citações perfeitamente dispensáveis (a brevidade de um argumento é sempre um ponto forte desse argumento).

A primeira suposição de quem é contra a eutanásia é que as pessoas querem morrer não porque não aguentam o sofrimento, físico ou psicológico, mas sim porque lhes faltam as condições para o suportar, cuidados paliativos adequados, amor dos familiares e amigos, etc.

Postas perante uma escolha em condições adequadas, as pessoas nunca escolherão um mal. Sucede que livre arbítrio implica a capacidade de escolher mesmo um mal.

Aqueles que aceitam que mesmo com as melhores condições possíveis haverá sempre quem opte por morrer (a Bélgica tem dos melhores cuidados paliativos do mundo e mesmo assim as pessoas optam pela eutanásia) argumentam então que a vida é um direito (também uma dádiva, para alguns) indisponível, como refere o autor do texto. E que a dignidade humana não tem um valor individual, mas colectivo.

Ora isso implica negar a um ser singular o direito à autodeterminação, à escolha do seu Destino, mesmo que seja mergulhar nessa Noite Escura. Trata-se de traficar um Direito (o da Liberdade, esse sim indisponível) por outro, o Direito à Vida, que se torna assim uma obrigação de viver em nome dos outros. É uma posição perfeitamente respeitável, mas não é a minha.

Para um não-crente como eu, toda a morte é indigna, mas continuar a viver em certas circunstâncias pode sê-lo mais ainda. Não quero a eutanásia para os outros. Quero-a para mim, se precisar dela e tiver essa coragem...