29 janeiro 2020

"libertação de Auschwitz"

O tema de ontem na Enciclopédia Ilustrada era "libertação de Auschwitz".
Partilho o texto que lá escrevi, apesar de repetir ideias e histórias que já passaram por este blogue.
No final, partilho também alguns dos comentários que o texto suscitou naquele grupo.


Na semana passada o presidente da República da Alemanha encontrou-se em Israel com alguns judeus sobreviventes dos campos de concentração. Uma das mulheres falou do dia da libertação, quando um soldado disse ao grupo de raparigas com quem ela estava que se podiam ir embora, para onde quisessem. Elas olharam umas para as outras, aflitas, sem força, desorientadas. Nenhuma festejou. "Nenhuma de nós disse um Aleluia", disse ela. "Não sabíamos para onde havíamos de ir."

Como a E. C. P. e o J. P. já aqui referiram, após a #libertação_de_Auschwitz os sobreviventes não tinham para onde ir. Na parte ocidental da Alemanha foram criados campos para “displaced persons”, onde alojaram os prisioneiros dos campos localizados na Alemanha. Muitos dos sobreviventes dos campos dos países de Leste dirigiram-se também para essses centros onde aguardaram enquanto decorria o processo moroso de determinação de um novo lugar para viver. No final da guerra, havia cerca de 250.000 judeus na Alemanha, tanto nesses campos como em alojamentos privados, tentando desesperadamente encontrar os seus familiares e recomeçar a vida.
(Mais informações nesta página do Museu do Holocausto e nesta página da BBC)

A emigração para a Palestina estava muito condicionada devido à pressão – mais que justificada – dos palestinianos. Um episódio à margem da tragédia: a criação da orquestra de Israel, que permitiu contornar as leis britânicas da emigração para a Palestina, e salvar da Europa inúmeros músicos que tinham conseguido escapar ao Holocausto, juntamente com as suas famílias. A criação do Estado de Israel em 1948 permitiu abrir as fronteiras aos judeus, que finalmente deixaram os seus campos de Displaced Persons e puderam instalar-se numa terra sua. Uma das minhas anedotas favoritas de humor hebraico refere-se a este momento da História dos judeus: um navio cheio de sobreviventes do Holocausto dirige-se a Israel. Ao avistarem terra, todos os passageiros desatam a gritar de alegria. Todos, menos um, que se lamenta e chora. “Porque é que te lamentas?”, pergunta-lhe outro passageiro. “Ora, se era para os ingleses nos darem uma terra que não era deles, preferia que nos tivessem dado a Suíça...”


Muitos judeus polacos sobreviventes de Auschwitz tentaram regressar à sua terra e recuperar os seus haveres. Alguns destes foram mortos pelos antigos vizinhos – e imagino que esse crime não fosse resultante apenas da cobiça, mas se devia sobretudo ao facto de estes regressados da morte serem um espinho vivo cravado na consciência daquela comunidade. O filme húngaro “1945”, de Ferenc Török, fala-nos da tensão e do sentimento de culpa que esses regressos despoletavam: pouco depois do fim da guerra, corre numa aldeia húngara a notícia da chegada iminente de dois judeus que ninguém conhece. A simples presença dos dois homens na aldeia basta para sacudir as consciências e as relações entre os seus habitantes. O enredo está bem construído, as personagens desenvolvem-se com equilíbrio, a crítica social e histórica está bem colocada, e o conjunto resulta numa homenagem digna às vítimas do Holocausto. De tudo isso, que já está muito certo, sobressaem imagens de extraordinária força: as de dois judeus que atravessam em silêncio uma aldeia cheia de tensões. Das imagens mais inesquecíveis que vi na Berlinale de 2017.

Como o L. B. disse, após a libertação de Buchenwald os americanos obrigaram a população de Weimar a subir à colina para ver. Admito que os americanos estivessem perplexos pela combinação entre a dimensão do horror do campo e a cegueira da população da cidade, que vivia a 10 km daquele campo descomunal, assistira aos transportes e às marchas da morte, vira prisioneiros andrajosos e famintos a remover os escombros das casas bombardeadas. Também Jorge Semprun, um dos libertados desse campo, se sentia curioso em relação à população alemã que era testemunha daquele crime, e por isso foi visitar uma das aldeias próximas e pediu a uma velhinha que o deixasse entrar para ver a sua casa. Ela abriu-lhe a porta, levou-o à sala – de onde se via distintamente Buchenwald – e, sem saber bem o que dizer, comentou com o antigo prisioneiro: “é uma salinha muito acolhedora, não acha?”

Não vale a pena gastar tempo a julgar a população de Weimar e das redondezas de Buchenwald. Dizemos “nunca mais”, mas fazemos - quase! - o mesmo. Também nós somos exímios em não ver o sofrimento e o desespero dos humanos que se desenrola mesmo à frente dos nossos olhos. Quantos de nós reconhecem verdadeiramente o ser humano no sem-abrigo andrajoso, no pedinte vítima de uma rede mafiosa da Europa de Leste, na prostituta que aceita fazer tudo o que querem dela (sinal óbvio de que se trata de uma escravizada)?

Desviamos o olhar. Incomoda-nos, mostra-nos os limites do nosso poder de mudar alguma coisa, e de qualquer modo contamos com o Estado para cuidar desses problemas.

Temos desculpas – oh, tantas! A população de Weimar também as tinha. E eram tão boas, ou tão más, como as nossas.

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Comentários do Lutz Brückelmann (velho amigo deste blogue) a este post:

As nossas desculpas são piores do que as das pessoas de Weimar. Ao contrário destas, estamos bem alimentados, seguros e livres.Em relação ao que nós não fazemos e devíamos fazer (e até sabemos que devíamos fazer), ouço nestes dias um audiobook, e ainda não arranjei coragem ou melhor forma de o impingir a todos os amigos: "The life you can save" de Peter Singer. Um guia prático para melhor fazer o que está no título do livro, incluindo respostas às críticas que recebeu dos seus argumentos. (O livro foi publicado pela primeira vez há 10 anos.) Ainda não o acabei, mas especialmente nas respostas às críticas descobri muitas desculpas minhas, para não ter feito mais do que fiz, e também pelo facto de que ainda hesito na divulgação do livro.

Comentário de outra colega enciclopedista:
Toda a informação e reflexão que aqui apresentas obriga-nos a levantar do conforto do nosso palavreado de santinhos que não têm nada a ver com esses horrores. Temos. Temos, sim, agora mesmo estamos à beira de ser interpelados e quantas vezes olhamos para o lado. Eu, confesso, até diante das notícias crescentemente horríveis dos telejornais, passo a vida a dizer que não aguento, que vou deixar de ver televisão... Então, isto é o quê? E sei que não adianta perguntar-me o que posso eu fazer?...


3 comentários:

Margarida disse...

Um excelente texto com muita informação que desconhecia. Uma análise do que se passou naquela altura e uma questão que fica no ar para todos reflectirmos.
Não estaremos todos demasiado acomodados ao que vem acontecendo por quase todo o mundo. Ontem, ao ver mais um post de um animal abandonado, pensei: Mas que raio, não tenho nada contra os animais, antes pelo contrário, mas não é esquisito que fiquemos mais afrontados do que ficamos em relação a muita gente, das mais variadas idades, que um pouco por todo o lado continua sujeita a atrocidades?
Penso que as duas situações não são incompatíveis mas que fiquei a matutar e a continuar a não perceber é um facto. Ainda continuo a tentar encontrar respostas.

Abraham Chevrolet disse...

Auschwitz foi libertado pelos soldados da gloriosa UNIÃO Soviética...
Quase nos tínhamos esquecido.

Helena Araújo disse...

Margarida, é muito fácil sentirmo-nos responsáveis por um animal devido à sua extrema dependência. Além disso, os problemas que tem são relativamente fáceis de resolver.

Os seres humanos, pelo contrário, têm contextos complexos, independência e liberdade. Ajudá-los (mais do que a esmola dada na rua) exige de nós muito mais em capacidade de entrega e altruísmo do que é necessário para ajudar um animal. É um desafio muito maior. Admito que muitas pessoas recuem perante ele.