24 dezembro 2019

"donativo"



Há dias, o tema na Enciclopédia Ilustrada foi "donativo".
Sem grande tempo para escrever um post como lá se exige, larguei alguns apontamentos ao correr da pena.

Ontem reli-os, e parei mais tempo no décimo, sobre ser capaz de ver o rosto de Jesus Cristo nas pessoas que têm a mais miserável existência. Por ser Natal, demoro-me um pouco mais neste. O Jesus em que acreditamos não veio ao mundo para nos proporcionar momentos especiais em família, muito menos o kitsch natalício e o conforto de um presépio armado na sala. Aquele cujo nascimento comemoramos agora veio para nos desinstalar, para nos abrir os olhos, para nos convidar à exigência, para nos abrir ao amor - a nós próprios (quantas vezes somos o nosso maior inimigo), e aos outros, especialmente aos que preferiríamos ignorar ou até desprezar.

O donativo dos cristãos tem de ser muito mais que a esmola generosa. Sem amor, não é cristão.

"E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo em sacrifício, não tivesse amor, nada disso terá significado."  (primeira epístola de Paulo aos coríntios, 13, 1-13)

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Se me permitem, alguns apontamentos soltos sobre #donativo:

1. A minha avó "tinha um pobre" (para usar uma expressão do António Lobo Antunes: "arranje-me um pobre, mas que venha sem tuberculose, que esses morrem muito") que vinha pedir aos sábados. Punha-se em frente à janela da cozinha a rezar o pai-nosso em voz muito alta, até que a minha avó o ouvia, enchia rapidamente um cesto com chouriço, presunto e broa, que baixava pela janela até à rua, pendurado por uma corda. O pobre pegava nas coisas, dizia mais umas rezas, e seguia. Eu adorava todo aquele folclore.
Também havia o Emílio, o maluquinho da aldeia. Entrava em todas as casas com à-vontade de primo, e em todas recebia dinheiro. "Que fará ele com tudo o que lhe dão?", perguntava-se a aldeia. Suspeitavam que ele teria um fortuna algures, mas davam na mesma.

2. Dou a muitos dos que me pedem. Devia dar mais, e mais vezes. Sinto-me mesquinha quando me pedem e não dou. Devia dar mais, mesmo sabendo que é para comprar uma droga qualquer. Penso: e se fosse eu? Não queria estar na situação de ter de pedir para comprar droga.

3. Em frente ao nosso supermercado em San Francisco havia um pedinte simpático, sempre o mesmo. Por mania minha, em vez de lhe dar dinheiro dava-lhe algumas das coisas que acabara de comprar. Uma vez quis dar-lhe metade da minha baguete fresquinha. Ele sorriu, e disse que não podia aceitar porque tinha diabetes. Senti uma enorme vergonha pela minha arrogância de querer decidir o que ele comeria, em vez de lhe dar dinheiro para ele comprar o que quisesse.
Já os meus filhos eram (são) bem mais sábios. Numa daquelas vezes em que os deixei no carro enquanto "ia a correr comprar pão e leite" (sim, ainda não sabia que nos EUA é expressamente proibido deixar miúdos daquela idade sozinhos no carro, mesmo que seja apenas por "um minutinho"), ao sair do supermercado dei com o sem-abrigo a sorrir de forma diferente. Quando nos cruzámos, elogiou muito os miúdos. Olhei para eles: estavam no carro, muito ocupados a juntar todas as moedas que encontravam nos seus próprios bolsos e no carro, contavam-nas na palma da mão e olhavam para o senhor, procuravam mais, voltavam a contar...
(Está bem, está bem, escusam de ralhar comigo: nunca mais os deixei sozinhos no carro!)

4. Há uma série de anedotas sobre senhoras que dão dinheiro a um pobre e lhe dizem para não ir gastar no primeiro bar (numa delas, a resposta é: "vejo que é entendida - o vinho do segundo bar é muito melhor"). Aprendi há muito que os donativos que dou não me dão direitos sobre a pessoa que recebe. Dar tem de ir a par com o respeito pela liberdade do outro.

5. Conheço bem as teorias: o Estado é que devia fazer. Mas hoje e agora, perante esta pessoa que tem fome, ou que precisa de beber uma cerveja, ou que precisa de sabe-se lá que droga, enquanto o Estado não faz temos de fazer nós. E convém que o saibamos fazer com a dignidade necessária. Para humilhação, já basta ter de pedir.

6. Tenho sentimentos muito contraditórios em relação aos bandos organizados de pedintes. Imagino que vivam em condições próximas das de escravatura. Mas será que o meu donativo as ajuda, ou - por tornar o negócio rentável - perpetua a exploração?
Houve uma fase em que surgiram em Berlim pessoas a pedir contando histórias de extrema necessidade. Respondi a uma delas que duas ruas mais à frente era o escritório da Caritas, e que com certeza a poderiam ajudar. Afastou-se na direcção contrária.

7. Odeio as campanhas de donativos para o banco alimentar nos supermercados. Isso é uma maneira de o supermercado aproveitar a nossa solidariedade para vender ainda mais. Acharia bem se o supermercado se oferecesse para duplicar todos os donativos: por cada saco de arroz que eu der, o supermercado junta-lhe outro.

8. Uma vez pus de lado 20 euros para pagar um jantar no restaurante, mas ofereceram-me o jantar. No regresso a casa passei por um músico-pedinte e não lhe dei nada. Ainda hoje penso que lhe devia ter oferecido os 20 euros que já tinha dado por perdidos. Porque é que aceito que me dêem, mas não dou com a mesma generosidade?

9. Muitos sem-abrigo berlinenses têm cães. Geralmente são cães amorosos, com ar feliz e muito bem tratados. Sinto uma certa tendência a dar mais quando vejo um cão, e a seguir sinto vergonha deste impulso.

10. Uma vez ouvi uma senhora da minha antiga paróquia a falar do trabalho que fazia para os sem-abrigo. Dizia ela: "se não fores capaz de ver Jesus Cristo nessa pessoa, mais te vale nem começar a tentar ajudar. O que os salva é sentirem-se reconhecidos como seres humanos."

11. Confesso que tenho dificuldade em reconhecer Jesus Cristo naquelas pessoas marcadas pela maior indigência.
Mas talvez haja esperança para mim: há tempos passei por um homem sentado no chão, a pedir. Queria dar-lhe algum dinheiro, mas só tinha moedas de 2 e 5 cêntimos. Dei-lhas, e sorri enquanto pedia desculpa por ser tão pouco. Ele começou a pedir insistentemente: "não pare de sorrir! não pare de sorrir!"
Senti-me feliz por - mesmo que inadvertidamente - lhe ter dado justamente aquilo que lhe fazia mais falta.

12. Nestes apontamentos usei várias vezes a palavra "vergonha". Provavelmente sinal do embaraço mútuo nesta relação assimétrica. A existência de pedintes, de donativos e de dadores é algo que envergonha a nossa condição de humanos. Sendo - infelizmente - necessária, saibamos ao menos praticá-la com dignidade.

5 comentários:

JCS disse...

Obrigado por me ter dado isto.
Feliz Natal.
(João Silva)

Helena Araújo disse...

Ora essa! :)
Obrigada, e boas festas.

Unknown disse...

Helena, belíssimo texto de natal, deslumbrei-me com a primeira parte («ainda que eu fale a língua dos anjos (...) sem amor eu não sou nada); a segunda nem tanto. não consigo dar a pedintes... compreendo a sua perspectiva de respeito pelas opções do outro, mas eu não consigo dar para droga, álcool, redes organizadas de pedintes - como não daria a nenhum amigo nem filho para esse efeito. custa-me a aceitar certas opções. claro que depois tb tenho dificuldade em me dar aos pedintes de rua, em dar a essas pessoas o tal sorriso, porque acho sempre que a seguir me vão pedir mesmo o dinheiro.

nem de propósito hoje vi um dos videos mas vistos no P3 do Público e que era sobre isto https://www.publico.pt/2019/11/08/p3/video/na-rua-ainda-sou-eu-uma-campanha-para-mostrar-que-todos-podemos-ficar-sem-abrigo-20191106-121432

de qualquer forma, obrigada por me fazer pensar

Mónica G

Helena Araújo disse...

Tenho um problema com as redes organizadas de pedintes. E ao mesmo tempo tenho imensa pena das pessoas exploradas por elas.
Quanto a dar para drogas: percebo a perspectiva de não ajudar ninguém a comprar a droga em que está viciado. Mas só posso fazer duas coisas por aquela pessoa: ou ajudá-la a combater a situação trágica em que está metida, ou pelo menos ajudá-la a conseguir o alívio naquele momento. Tudo o resto é indiferença.
Nós não somos proprietários da consciência e da vontade daqueles que precisam da nossa esmola.
Mal comparado: quando estou com uma vontade enorme de comer um bocado de chocolate, a última coisa de que preciso é que alguém me venha dizer que isso faz mal, e se interponha entre o chocolate e a minha vontade de chegar a ele.
Mal comparado: ontem, na festa de passagem de ano, bebi quanto vinho me apeteceu. Sempre que pedi para me servirem mais vinho, porque era realmente bom e me estava a saber muito bem, ninguém me passou lições de moral sobre os perigos do álcool.
Os pedintes estão entre as pessoas mais frágeis da nossa sociedade. Não quereria trocar a minha vida com a de nenhum deles. Por isso mesmo me merecem - ao menos - o maior respeito.

Unknown disse...

sim, Helena, tudo o resto é indeferença, assumo a minha culpa. mesmo assim não consigo...

Mónica G