11 dezembro 2019

dar a mão

Mais notícias do que se passa na Alemanha. Desta vez, é sobre a recusa da presidente da Câmara de Eisenach de apertar a mão a alguns colegas do Conselho Municipal, por serem neonazis.

Eisenach é uma pequena cidade da antiga RDA, situada perto da antiga fronteira que separava as duas Alemanhas. É a terra natal de J.S. Bach, e dela faz parte a fortaleza Wartburg, na qual decorreram alguns dos episódios mais importantes da História alemã (residência da rainha Santa Isabel da Hungria e da Turíngia, que introduziu naquela região da Alemanha medieval a espiritualidade franciscana e a opção pela ajuda aos pobres - tal como a sua parente em Portugal, a nossa rainha Santa Isabel; foi também ali que Martinho Lutero se escondeu durante vários meses, enquanto traduzia o Novo Testamento para alemão, o que teve consequências enormes tanto no Cristianismo como na unificação da ortografia alemã). Para além da sua importante história, hoje em dia Eisenach tem universidade, ciência, cultura, indústria (fábrica da Opel) - e 10% de neonazis na Câmara Municipal, além de quase 12% de AfD.

Por norma, o compromisso dos membros do Conselho Municipal é selado simbolicamente por um aperto de mão com o presidente da Câmara. Mas a presidente, Katja Wolf, do partido Die Linke, recusa-se a ter qualquer contacto físico com neonazis, e em especial com Patrick Wieschke - que é um político neonazi muito influente no seu partido, com ligações à célula NSU, e registo criminal por - entre outros - atentado bombista a um estabelecimento de döner e por discurso de ódio. Patrick Wieschke levou o caso a tribunal, exigindo o cumprimento das obrigações da autarca, e este teste de stress à Democracia alemã já se arrasta há cinco anos. O tribunal de primeira instância considerou que o aperto de mão consiste numa proximidade física que pode ser muito penosa em caso de divergência inconciliável de opinião. O de segunda instância focou-se na lei, que prescreve o aperto de mão de forma clara. O caso está agora a ser tratado a nível federal, e deu azo a um intenso debate sobre a defesa da Democracia e a luta que uma sociedade livre e aberta deve travar contra tendências anticonstitucionais.

Traduzo do Spiegel alguns excertos da entrevista a Katja Wolf (sublinhados meus):

"Um aperto de mão tem uma grande força simbólica, porque representa um encontro entre pessoas do mesmo nível que se respeitam. (...) Para mim tornou-se claro que há uma fronteira pessoal: não quero ter contacto físico com determinadas pessoas, e ainda menos num contexto oficial.
(...)

Em Eisenach temos um problema com um millieu de extrema-direita, mas 90% dos cidadãos repudiam o NPD. 
O Tribunal Constitucional considerou que se trata de um partido anticonstitucional. Seria terrível estabelecer uma normalidade política com um partido destes e com a sua ideologia
Se posso ser um pouco patética: o que me move é nada menos que a defesa da Constituição - "a dignidade humana é inviolável" - que o programa do NPD basicamente rejeita. Mas a minha recusa de apertar a mão a políticos do NPD é mais do que uma decisão política. É também uma decisão muito pessoal. O sr. Wieschke é, em cada fibra do seu corpo, uma pessoa racista, de valores anticonstitucionais e de extrema-direita. Porque haveria eu de ter contacto físico com uma pessoa dessas?
(...)
A República de Weimar não falhou por causa da minoria de direita radical. Falhou por causa do silêncio da maioria democrática. É por isso que não se pode estabelecer uma normalidade com os inimigos da Constituição - e é também por isso que apelo à abolição desta regra ultrapassada do aperto de mão.."
(...)
Normalmente não sou fanática dos princípios. Mas quando se trata de contacto físico, para mim torna-se uma questão de princípio. O meu corpo pertence-me a mim!"
Neste link há um vídeo, da página do próprio Patrick Wieschke, que mostra a segunda vez (início do segundo mandato) que a presidente da Câmara se recusou a apertar a mão aos conselheiros do NPD. Patrick Wieschke é o da esquerda, de camisa vermelha, que desvia ostensivamente o olhar.

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Um comentário à margem deste assunto: esta questão do contacto físico também está a ser estudada por outros tribunais no contexto de muçulmanos que se recusam a apertar a mão a pessoas do sexo oposto.
Há uma diferença fundamental entre os casos: no desta autarca, uma parte importante da recusa funda-se na defesa dos valores constitucionais; já as imposições islâmicas vão contra a ordem constitucional alemã que impõe um tratamento de igualdade independentemente do sexo.
Mas a frase da autarca sobre o corpo dela lhe pertencer a ela, independentemente das leis do país, é também um óptimo argumento para os muçulmanos usarem em tribunal.
(Às vezes não tenho inveja nenhuma dos juízes que têm de decidir estas coisas.)


1 comentário:

Gato Aurélio disse...

assuntos importantes a discutir, sem dúvida!