30 outubro 2019

ai jajujótempo volta para traje...

Andava há que tempos para contar que o meu lado Calamity Jane atacou de novo: mal pusemos abelhas no nosso jardim, morreu o Karel Gott (sabem, o da canção da abelha Maia). Ia contar isso, mas ainda não organizei as fotos da colmeia e por isso adiei esta conversa. E ia contar também que quem carregou a colmeia pesadíssima para cima da garagem é uma pessoa de meia idade muito simpática, com aparência de homem mas vestindo sempre saias e vestidos de estilo confortável. Da última vez que veio ver se tudo estava bem com as abelhas veio de mini e eu senti-me feliz por viver numa cidade onde um homem pode vestir-se como lhe apetece.

Disse "homem", e não sei se é realmente um homem que gosta de vestir saias só porque sim, ou se usa saias por se sentir mulher apesar de ter uma aparência de homem.
Talvez um dia lhe pergunte. Perguntava hoje mesmo, se tivesse a certeza que ele gosta de conversar sobre isso. Tenho ficado calada para não o incomodar com a pergunta que - imagino - deve ouvir mais vezes que qualquer outra.
O problema do meu silêncio é que aquela pessoa não pode saber se nasce do respeito (é o caso) ou da indiferença.
Em todo o caso: acho que aquelas saias e aqueles vestidos que escolhe vestir lhe ficam lindamente, e tornam esta cidade um pouco mais bonita e ainda mais respirável. 



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Esta manhã li no facebook um post escrito pela Helena Ferro de Gouveia, que me fez logo pensar na minha mãe, que em 1970, em Braga, usou na fase final da gravidez do meu irmão mais novo um fato muito catita de calças e poncho. Sublinho: em Braga.

É certo que muitas décadas mais tarde um padre - daqueles tão progressistas que chegou a ser seguido pela Pide - viria a dizer-me que a minha mãe era "estouvada". E contudo: muitas vezes ao longo destas décadas que já levo de Alemanha dou-me conta de que Portugal tem, em muitos casos, uma mentalidade mais aberta e moderna. Mas depois atravessa-se-nos um assessor de saia no Parlamento, e ai jajujótempo volta para traje...

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O texto da Helena Ferro de Gouveia é este:

Helena Ferro de Gouveia
Durante uns segundos históricos, houve silêncio no Bundestag. Seguiu-se uma vaia e uma onda de comentários indignados. Estávamos na época do amor livre e das comunas, no pós Maio de 68. Nos cinemas passava filme de esclarecimento sexual “ Deine Frau, das unbekannte Wesen“ ( A tua mulher, o ser desconhecido ) de Oswalt Kolles.
A 14 de Outubro de 1970, Lenelotte von Bothmer, deputada do SPD (o PS alemão) , 53 anos e mãe de seis filhos, fez uma intervenção sobre política de ensino. Foi um escândalo. Não pelo que ela disse, mas por o ter feito de calças. “Die erste Hose am Pult!“, gritaram indignados alguns deputados. Carlo Schmid (SPD) evocou a honra e a dignidade parlamentar ferida, Richard Jaeger (CSU) argumentou que a deputada feria a dignidade feminina. “Sie sind keine Dame!“ ( você não é uma senhora), “Sie sind ein unanständiges, würdeloses Weib!“ ( é uma mulher indecorosa e sem honra). Também lhe perguntaram se da próxima vez iria discursar nua.
Quatro décadas depois a Alemanha tem uma chanceler que quase só veste calças, teve um ministro dos Negócios Estangeiros homossexual que levava o marido em viagens oficiais ( até à Arábia Saudita) e assessores de saias. Por cá o debate está a começar e confesso que me surpreende que pessoas que se dizem “de esquerda” ou “liberais” usem argumentário dos anos setenta para defender o iliberalismo. Causa-me profunda estranheza.
Não é uma mera questão de saias, nem do comprimento das mesmas. É uma questão de mentalidades.
Bom dia.


1 comentário:

ATAV disse...

Não sei porque que a reação à saia do assessor do Livre lhe causa estranheza. A solução é simples. Os "liberais" em Portugal são na realidade reacionários que se apresentam como liberais ou de esquerda para parecerem modernos. Nada mais...