15 setembro 2019

descolonizar genealogias


(Na imagem: como em todas as sessões que vi até agora na qual participa um palestrante brasileiro, é exibido um cartaz exigindo a libertação de Lula. No caso, é Luiz Ruffato quem ergue o cartaz.)


Ontem fui assistir à conversa entre Grada Kilomba, José Eduardo Agualusa e Luiz Ruffato sobre "descolonizar genealogias", no âmbito do 19º Festival Internacional de Literatura de Berlim.

O programa rezava assim: "Current genetic research shows that the traces of sexual crimes committed under European colonial rule are inscribed in DNA. Luiz Ruffato [BRAZIL] has often commented on these crimes. The writers Grada Kilomba [PT/ D] and José Eduardo Agualusa [ANGOLA/ MOZAMBIQUE/ PT] also engage with Portuguese colonial history. In his novel »The Book of Chameleons«, Agualusa tells the story of a genealogist who invents new family trees for his clients."

A conversa tomou outra direcção. Teria gostado de os ouvir falar sobre o tema proposto, mas não dei a tarde por perdida. Pelo contrário. Gostei especialmente das intervenções da Grada Kilomba, sobre a descolonização ainda por fazer: o trabalho de desinstalar, desmantelar, reinventar. Por exemplo na questão linguística: a língua portuguesa continua cheia de vestígios de um sistema de pensamento colonial que ainda não foi confrontado e muito menos deu lugar a um reajustamento fundado na dignidade do ser humano. O moderador da mesa, Michael Kegler, interrompeu-a para comentar que essa questão lhe dá muitas dores de cabeça no seu ofício de tradutor literário: como traduzir para a língua alemã os termos da língua portuguesa que ainda não passaram por um processo de descolonização linguística? 

[   E eu a pensar com os meus botões: palavras e frases como "semítico", "judiar", "pareces judeu!", "ciganadas", "que paneleirice!", "não sejas maricas!" seriam difíceis de traduzir para alemão. A tradução literal seria impensável. Ou não? Quer dizer: será que é obrigação do tradutor literário encobrir a realidade linguística da cultura do texto original? Ou deve exibir em todo o seu esplendor o racismo, o anti-semitismo, a homofobia presentes na linguagem?
Deve optar por exibir, mesmo sabendo que a exposição ganhará uma forma de certo modo enviesada, resultante da diferença de velocidades no debate sobre estas questões?
Uma tradução literal faz com que o texto de chegada não seja comparável ao texto de partida porque as respectivas sociedades se encontram em fases diferentes do trabalho de revisão do poder da língua como hábito de opressão. Um exemplo: se um alemão dissesse com palavras alemãs o equivalente literal de um "ciganagem" ou um "não sejas judeu!", estaria a pôr-se deliberadamente numa posição de provocação extrema, porque na sociedade alemã há consenso sobre a terrível carga negativa daquelas expressões. Mas o português que fale assim não está a provocar - está simplesmente a usar as palavras que aprendeu e se usam normalmente no seu país. Ou seja: na versão alemã, o carácter da personagem que tivesse este tipo de discurso seria muito diferente do carácter da mesma personagem no original português. Em alemão, algo como um neonazi; em português, boa pessoa.
Mas também a decisão oposta, a de não traduzir literalmente, tem consequências. Mesmo que os portugueses não se dêem conta da carga opressiva das palavras que usam, quer dizer, mesmo que "não façam por mal", essa carga opressiva e ofensiva está presente e actuante. Ao eliminar certas palavras, trocando-as simplesmente pela palavra alemã que transmite a ideia subjacente ao texto (traduzir "maricas" com se fosse "medricas", por exemplo), o tradutor está a colaborar no branqueamento das práticas linguísticas de banalização de um discurso opressor de certos grupos.
A questão, no fundo, não é o personagem de um romance dizer determinadas palavras. A questão é todo um país que não quer ver problema algum no uso daquelas palavras.
Por estas e por outras é que nunca hei-de ir longe como tradutora literária: a minha vontade era traduzir literalmente, e fazer uma curta introdução para explicar que naquele país é normal falar assim.
Um último apontamento: curiosamente, ao procurar exemplos, não pensei logo em expressões que ofendessem os negros. As primeiras que me ocorreram revelam o que mais me preocupa: anti-semitismo, anticiganismo, homofobia. O racismo contra os negros expresso nas palavras que usamos não parece estar no meu radar. O que é, mais uma vez, sinal de ignorância em relação a este tema. E escusam de se rir de mim, porque o problema não deve ser só meu. O que mais se ouve em Portugal é a convicção de não sermos um país racista. Pois não, não somos: enquanto não tivermos a vontade e a coragem de olhar de frente para o problema, podemos continuar a acreditar alegremente que somos os colonizadores mais fofinhos do mundo.  ]

Voltando à sessão de ontem: por sorte, Grada Kilomba deu exemplos que me revelaram essa realidade que, de tão naturalizada, já nem notamos. "Mestiço" é a palavra usada tanto para o cruzamento de pessoas de etnias diferentes como para o cruzamento de animais de raças diferentes. "Mestiço", "cabra" e "cabrito" provam que as palavras foram (e são) usadas para animalizar seres humanos em função da cor da sua pele. E é aqui que estamos hoje, ainda.

A Lusofonia também foi um tema importante de debate: quando usamos esta palavra - e quantas vezes a usamos com orgulho! - não temos qualquer consciência da carga de violência que ela encerra. Vários continentes que falam a mesma língua significa que em todas essas terras um poder colonizador aniquilou a cultura e a língua existentes. E para além da língua e da cultura, a própria identidade das pessoas, obrigadas a trocar o nome da sua família por um apelido português. Arrasar o passado das pessoas, arrasar a sua cultura, arrasar a sua língua. Pior ainda: dado que muitas das vítimas da colonização não puderam aprender o português em toda a sua plenitude, as suas possibilidades ficaram limitadas, reduzindo-lhes o lugar na sociedade ao parco conhecimento da língua que lhes foi imposta.

Luiz Ruffato deu um exemplo do mesmo fenómeno, embora de menor dimensão: quando o Brasil entrou na II GM do lado dos Aliados, os países de origem de grande parte da sua população passaram a ser o inimigo: alemães, italianos, japoneses. Os brasileiros desses grupos nacionais foram proibidos de falar a sua língua de origem. Os homens, que trabalhavam fora de casa, conseguiram adaptar-se facilmente. Mas as mulheres, circunscritas ao espaço familiar onde só se falava o idioma do país de origem, perderam a voz. A sua própria avó deixou de falar em público, porque só sabia falar italiano e corria o risco de ser presa.

A sessão acabou sem debate com o público, e foi pena. Gostaria muito de perguntar ao José Eduardo Agualusa como se concilia o discurso de descolonização com a posição do branco que se assume como produtor de cultura angolana.

2 comentários:

Catarina disse...

Em relação a traduções sou de opinião de que o tradutor deve acrescentar em pé de página N. do T. ou observações complementares no início ou no fim do texto traduzido.

Numa sessão de debate a sua pergunta seria um boa pergunta!

Jaime Santos disse...

Numa entrevista a Spike Lee que li há muitos anos, quando lhe perguntaram sobre as opiniões que certas personagens negras dos seus filmes expressavam sobre os brancos, ele retorquiu perguntando se achavam que por as personagens italo-americanas de Scorcese ou Coppola serem racistas isso implicava que esses realizadores eram eles mesmos racistas.

A linguagem, como diz, reflecte a consciência ou a falta dela que uma sociedade tem em relação aos conflitos latentes dentro dela ou com outras sociedades. A única maneira correta de proceder para um tradutor será, penso eu, fazer uma tradução literal e contextualizá-la com uma nota.

De outro modo, o livro perde a capacidade de ser ele próprio uma janela para a dita sociedade...

Ironicamente, isto é válido excepto talvez para os de dentro, para quem o uso de tal linguagem passa por normal...

Eu diria que é exactamente o mesmo problema relativamente à edição de obras do Passado. A linguagem deve ser a usada na época, mesmo que se corra o risco de chocar o leitor...