13 julho 2019

"gaita"

A palavra de hoje na Enciclopédia Ilustrada é "gaita" (às vezes aos sábados a palavra proposta escorrega para a possiblidade de brejeirice, "porque hoje é sábado"...).

Mas quando alguém falou em "gaita-de-beiços" lembrei-me de um post que escrevi há década e meia, no princípio do blogue, e trouxe-o de novo à luz do dia. Melhor dizendo: trouxe a este nosso presente sombrio a luz de Reuven Moskowitz. Que tanta falta faz.



Conheci o Reuven Moskowitz no princípio deste século, porque a minha vizinha em Weimar o louvava imenso, e andava toda feliz com a perspectiva de receber em sua casa este homem tão cheio de alegria e frescura, que recebera o Aachener Friedenspreis por uma vida dedicada à construção de uma paz justa entre palestinianos e israelitas. Fomos ouvi-lo, e tivemos depois óptimas conversas bem acompanhadas de anedotas de humor hebraico e vinho do Porto. Contou um pouco da sua vida na Schtetl romena onde nasceu, evitou contar detalhes sobre o Holocausto, convidou-nos para ir a Israel conhecer alguns projectos e comunidades onde tem sido possível construir a paz (mas o Joachim recusou amavelmente, alegando alergia ao elevado teor de chumbo no ar).

O Reuven trazia sempre no bolso uma #gaita-de-beiços que uma família de palestinianos lhe deu no fim da guerra dos seis dias. Nessa altura ele era soldado, e sentia-se o vencedor mais triste do mundo. Estava encarregado de fazer respeitar a hora de recolha obrigatória num bairro. Algumas crianças começaram a espreitá-lo por trás de uma cerca, e ao vê-las ele sentiu o terrível peso das suas granadas, do capacete e das botas. Sorriu-lhes, foi ter com elas, deu-lhes os chocolates que tinha no bolso. Elas fugiram, e daí a pouco regressaram. Tinham uma laranja para ele. Depois apareceu o avô, convidou-o para a casa da família, e ofereceu-lhe uma gaita-de-beiços. Essa que ele passou a levar sempre consigo.

Numa das vezes que veio a Weimar, por volta de 2005, pediram-me para o ir buscar à estação de caminho de ferro. A conversa fluiu como se fôssemos amigos de sempre. Contei-lhe sobre os meus primeiros tempos em Weimar e a pergunta automática que me fazia sempre que via uma pessoa de idade: "há 60 anos, de que lado estavas?". Ele riu-se, "ah! tive a mesma reacção quando vim pela primeira vez à Alemanha!", e acrescentou: "não podemos ser assim, porque esse é exactamente o tipo de mecanismo que dá mais força ao anti-semitismo."
Fiquei a pensar nesta imensa sabedoria de saber perdoar ou esquecer, para poder recomeçar o jogo com cartas não marcadas. Vê-lo assim - ele, que escapou ao Holocausto -, tão disposto a aceitar a Alemanha e os alemães, faz-me pensar que no cântico dos anjos, “Paz aos homens de boa-vontade".

Mais tarde fui ouvi-lo no colóquio, onde falou sobre os mecanismos que impedem a paz em Israel: a diabolização premeditada do inimigo, as assimetrias na distribuição de forças e nas negociações. Foi muito claro em relação aos alemães: "É um erro gravíssimo atribuir uma culpa colectiva a todo um povo - os judeus viveram dois milénios com a culpa colectiva da morte de Cristo, e agora são os alemães que vivem com a culpa colectiva do Holocausto. Isto está errado! Não se deixem amordaçar por esses que vos impõem um sentimento de culpa colectiva. Vocês têm uma palavra a dizer sobre o que se passa em Israel, e têm obrigação de se pronunciar!"

Criticou Israel com desassombro e conhecimento de causa. Que os conflitos militares foram provocados por Israel para aumentar o seu espaço territorial, que Gaza não passa de uma enorme prisão, que há uma estratégia deliberada por parte de alguns políticos israelitas de desumanizar os palestinianos para melhor permitir a sua exploração sistemática, que os palestinianos têm sido vítimas de pogroms, e que o seu ódio tem crescido devido ao estado de permanente humilhação em que vivem. E que o único caminho para a paz é desistir das tantas mentiras criadas por motivos estratégicos e assumir a verdade, aceitar sentar-se à mesa com o opositor como um igual e não como um demónio (ou um "animal de duas patas", como um político israelita chamava aos palestinianos).

Um dos palestinianos presentes pediu a palavra, para falar sobre a sua cidade: 45.000 habitantes com um único check-point onde um soldado israelita de 19 anos dá livre curso ao seu sadismo, onde morrem pessoas porque a ambulância é obrigada a esperar várias horas, onde mulheres dão à luz em plena fila de espera no meio da rua. A cada nova frase o ódio tornava-se mais palpável - e compreensível.

Não tenho experiência de debates assim, e senti pena do Reuven, que, ao tentar abrir caminhos para a Paz, se expunha desta maneira. As suas palavras, que ainda há pouco soavam tão libertadoras, perdiam a força e tornavam-se quase ocas, impotentes perante os horrores a que os palestinianos são sistematicamente sujeitos.

Ele não se deixou intimidar pelo ódio. Falou do perigo de generalizar ("os judeus" ou "os palestianos" ou "os alemães" são conceitos que servem a lógica do ódio e da violência), e apelou para a necessidade de desarmar a região e criar uma confederação entre Israel, a Jordânia e talvez a Síria, com a possibilidade de livre movimentação para todos - qualquer palestiniano tem o direito de regressar à Palestina ("isso mesmo, apoiado!", dizia o palestiniano), qualquer judeu tem o direito de se estabelecer na Jordânia ("era o que faltava!", dizia o palestiniano).

E concluiu: temos de acreditar num futuro de paz. Olhem para mim: um judeu que escapou ao Holocausto e hoje tem alemães entre os seus melhores amigos. Digam-me se isto não é um sinal de esperança!

Tirou do bolso a sua gaita-de-beiços, contou como lhe tinha chegado às mãos, e terminou a sessão tocando canções árabes, alemãs e uma belíssima melodia para o seu salmo preferido:

Qual o homem que deseja a vida

e quer longevidade para ver o bem?


Preserva a tua língua do mal

e os teus lábios de falarem falsamente.

Evita o mal e pratica o bem,

procura a paz e segue-a.