22 fevereiro 2019

Berlinale 2019 - quinto dia



no meio do caminho havia uma árvore,
havia uma árvore no meio do caminho...

Durante a semana da Berlinale, é este o ritmo: sair de casa às sete e um quarto com o Joachim, e atravessar o Tiergarten de lés a lés ainda antes do sol nascer (tenho várias provas fotográficas, e até partilho aqui duas delas). Ir para a fila dos bilhetes, escolher os do dia seguinte, pequeno-almoçar a correr num sítio que não posso dizer porque os meus filhos são visceralmente contra ("mas é só durante a Berlinale..." - tento alegar em minha fraca defesa), e correr para a sessão das nove da manhã para a imprensa, normalmente um dos filmes do concurso.

Este quinto dia foi um pouco mais complicado: saí do carro na zona da Haus der Kulturen der Welt, atravessei o Tiergarten para ir buscar os bilhetes, voltei a atravessar para ir ver o primeiro filme na Haus der Kulturen der Welt, daí fui para a Friedrichstrasse, de lá para o Zoo, e de novo para a Haus der Kulturen der Welt - há-de ter sido meia maratona.
Berlinale, dois em um: cinema e desporto.

O último filme do dia foi com a família. A Christina perguntou-me pelos filmes que vi, e falei-lhe do "Of Fathers and Sons", do qual acabara de sair. Ia começar a recomendar-lho imenso, quando ela me interrompeu: "Mãe, esse é o filme do Talal! Já te falei dele, é o realizador sírio que está muito interessado no teu filme sobre os arménios!"
(Se calhar devia melhorar os meus skills de comunicação com a minha família...)

Os filmes do quinto dia:




Baracoa, de Pablo Briones, ou: uma infância em Cuba. O filme é uma mistura de documentário e ficção, com momentos cheios da poesia, da graça e das esperas infinitas da infância, mas também com alguns diálogos um pouco forçados.
O realizador contou que foi a Pueblo Textil em busca de um rapazinho para fazer uma curta-metragem. Quando já tinha uma boa dúzia de possibilidades, apareceram os dois amigos deste filme, tal e qual como se vêem no trailer: lado a lado, a mão do mais velho pousada no ombro do pequenito. Foram ter com ele, quiseram saber o que se passava ali, e ele explicou que estava a escolher um rapaz para fazer um filme.
- E sobre o que é o seu filme?
- É um gato que foge e um menino que vai à sua procura.
- Señor, - disse o mais pequenino - se tiver dois rapazes a procurar, encontra o gato mais depressa!
O realizador mudou ali mesmo os seus planos. Ficou com os dois miúdos, e encostou a sua história às histórias deles. O resultado foi Baracoa, sobre a infância universal num país único.





The operative, de Yuval Adler: Rachel, uma mulher com raízes em várias culturas e em nenhuma, torna-se agente da Mossad e é enviada para uma missão no Irão. À medida que se vai aproximando das pessoas desse país, questiona-se cada vez mais sobre o sentido do seu trabalho.
Um thriller bem feito, com bom ritmo, que louva a liberdade interior dos que não têm raízes nacionais e por isso podem destrinçar mais facilmente entre o correcto e o incorrecto, e nos questiona também sobre as redes de serviços secretos e as suas operações à margem da lei.


 


Of Fathers and Sons, de Talal Derki (secção Lola). Este documentário é um dos concorrentes ao Óscar deste ano, pelo que será possível vê-lo num cinema, ou na televisão. Muitíssimo duro, e absolutamente imperdível. Depois do "The Return to Homs", o refugiado sírio Talal Derki regressou ao seu país para filmar o quotidiano de uma família de combatentes da Frente al-Nusra, num trabalho que demorou dois anos.
O resultado deste acto de imensa coragem (e irresponsabilidade, diria eu) é um documento assombroso sobre a mentalidade e a vida daquelas pessoas: os miúdos tirados da escola porque "não aprendem nada" e levados ainda muito pequenos para os campos de treino, a doutrinação permanente, a entrega absoluta nas mãos de Alá. Uma pessoa vê, e enterra-se cada vez mais fundo na cadeira: em cada família há pelo menos meia dúzia de miúdos que serão treinados para lutar até ao fim, e que ouvem permanentemente a ladainha sobre tudo o que acontece ser a vontade de Alá, e termos de aceitar porque, sendo a vontade de Alá, está certo e é o que deve ser. Mesmo após ganhar a guerra contra o "califado", como será possível tirar este veneno de dentro das próximas gerações?
Talal Derki arriscou a vida neste filme, e sabia-o bem. Foi um trabalho esgotante, que o deixava catatónico e a dormir semanas seguidas nos meses em que interrompia as filmagens para regressar a casa. Passou todo aquele tempo a fingir ser quem não era, completamente à mercê dos homens da al-Nusra. Estes aceitaram-no por ser famoso, devido ao sucesso do seu "The Return to Homs", e naturalmente porque tinham interesse em ser filmados para divulgar no Ocidente imagens da sua força e determinação. Mas quando chegou um novo chefe àquela célula, e começou a fazer perguntas,
Derki viu-se obrigado a terminar abruptamente as filmagens.
Há uma passagem no filme ainda mais brutal que as restantes: imagens do pátio de uma prisão onde alinham prisioneiros de guerra. Rapazes novos, capturados pela al-Nusra e ali mantidos indefinidamente. Enquanto o seu operador de câmara gravava as cenas que os guerrilheiros queriam exibir ao Ocidente, Derki filmou discretamente grandes planos das caras daqueles jovens que acreditavam ter chegado o seu último momento. Insuportável. Naqueles rostos vi os amigos sírios dos meus filhos, e percebi melhor de que fugiram e porque é que se fizeram ao mar e à travessia de meia Europa em condições terríveis. Contaram-me eles que já estavam a ser perseguidos pelo regime de Assad, e se viram obrigados a fugir precipitadamente quando se deram conta de que havia grupos a raptar rapazes nas ruas do bairro onde viviam. Quem os raptava? Para quê?
No fim, falei com um dos elementos da equipa do filme, que revelou que a inclusão daquelas cenas foi a decisão mais difícil de tomar. Disse que no dia em que filmaram nenhum prisioneiro foi assassinado, mas na semana seguinte houve uma chacina naquela prisão. Não sabem quantos mataram, e quantos dos filmados estão ainda vivos. Também me disse que os guerrilheiros ficaram furiosos quando viram o filme, e que Talal Derki tem agora a cabeça a prémio na Síria.
- E fora da Síria, não?
- Não tanto. Não se conhece uma rede internacional à Frente al-Nusra.
Talal Derki. Se não fosse por mais nada, ter arriscado a vida e o seu futuro para fazer este filme seria já um bom motivo para o ver. Mas há mais motivos: o filme é um documento sobre o que se passa na Síria e os problemas que teremos de resolver nos anos que vêm.
Deixou-me a pensar sobre o pacifismo, o impulso de salvar a própria vida e o dever de lutar contra um mal tão terrível como o Daesh. Que é que eu faria se isto tivesse acontecido no meu país?
Deixou-me também a rogar pragas ao Bush e aos seus amigos Aznar, Blair e Barroso, que na cimeira dos Açores deram início à invasão do Iraque, essa guerra que alterou o precário equilíbrio da região e abriu o caminho ao daesh.

 

"37 Seconds" (2019, Drama, Japan) Teaser from HIKARI FILMS on Vimeo.


37 Seconds, de HIKARI. Yuma tem 23 anos, e a par dos problemas de mobilidade devido à sua paralisia cerebral sofre ainda às mãos de uma mãe superprotectora e de uma chefe que não a respeita. Quando decide começar um novo trabalho, desenhando manga erótico, a responsável da agência sugere-lhe que faça ela própria a experiência de uma relação sexual antes de começar a trabalhar naquela área. O resultado é um percurso acidentado que leva Yuma à descoberta de segredos familiares, à conquista de amigos pouco convencionais, e ao alargamento do seu mundo.

A realizadora contou que encontrou Mei Kayama - a actriz principal, com paralisia cerebral - já bastante tarde (11 meses antes da estreia do filme) e que a sua história pessoal inspirou algumas alterações à história. Talvez essas alterações de última hora e a realização demasiado apressada expliquem o excesso de temas no filme e a falta de um desenlace mais lógico. O filme abarca demasiados temas sem levar quase nenhum deles a bom porto, mas é salvo por uma Mei Kayama que lhe dá dignidade e o torna muito cativante. Não sendo um grande caso de cinema, é um filme que nos enriquece, diverte e dá que pensar.
Em conversa com o público, a realizadora falou da sexualidade das pessoas com certas deficiências, e alertou para a necessidade de mudarmos a perspectiva: essas pessoas não são disabled, são differently abled. Gostei muito da expressão: differently abled.
"Mesmo pessoas paralisadas podem ter relações sexuais e até orgasmos", disse a realizadora. E logo a seguir: "Oooops! Será que podia dizer orgasmo neste palco? Ah, que cabeça a minha! Claro que sim - estamos na Europa!" - e riu-se. Rimos todos. 
Alguém do público perguntou porque é que numa determinada cena a banheira estava cheia de água à noite, e a actriz Misuzu Kanno explicou que no Japão é normal a banheira ficar cheia para as pessoas da família tomarem banho umas após as outras. "Quando o marido chega a casa depois do trabalho", disse ela, "a mulher pergunta-lhe se quer jantar primeiro, ou tomar banho antes."
"Hehe", riu-se a realizadora, "quem me dera que me perguntassem isso quando chego a casa depois do trabalho: queres já o jantar, ou vais primeiro tomar banho?"
Algo me diz que cada vez se fazem menos japonesas como antigamente...

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