21 maio 2018

casamento real - a reportagem em diferido, pela vossa correspondente em Berlim

No sábado passado fiz mais um intervalinho nas coisas deste mundo louco em que vivemos, e ofereci umas boas horas de spa à minha futilidade, que também tem direito à vida. Uns gostam de pão e circo, outros de futebol, e eu, olhem, são estas pomposas encenações da felicidade, preparadas até ao mínimo detalhe, que me servem de alienação.

Nem sei por onde começar a contar o que mais me agradou no casamento de Meghan e Harry, e me acrescentou algumas rugas de sorriso às bastantes que já cá cantam. Sem tempo para organizar uma estrutura para o texto, vai ao correr do evento propriamente dito:

Um enviado alemão entrevista os fãs que esperam o carro da noiva. À sua volta, milhares de pessoas em grupos entusiasmados e alegres. Uma senhora diz: "she brings the world closer together".
Está dado o mote: isto é muito mais que um casamento real - isto é uma lufada de século XXI na monarquia britânica.

Mais século XXI: o pescoço escuro de David Beckham a espreitar por cima do colarinho imaculado. Tatuagens e fraque, hehehe.


A entrada da noiva (a partir de 1:45 no filme). Na falta de um pai ou um irmão para cumprir a tradição de a acompanhar ao entrar na igreja, esta mulher sobe as escadas e avança pela nave central sozinha - de cabeça erguida, confiante e calma, orgulhosa, perante centenas de milhões de pessoas que a vêem no mundo inteiro. Mais um ponto para o feminismo.



A soprano Elin Manahan Thomas canta "Eternal source of light divine", de Handel.

Eternal source of light divine
with double warmth thy beams display,
and with distinguish'd glory shine,
to add a lustre to this day
.

A mãe da noiva chora.
Esta mulher não se disfarça em nada: não tingiu os cabelos que embranquecem, não fez um penteado de branca, não tirou os piercings das orelhas e do nariz. E chora docemente durante todo o casamento. Não é a figurante que dá pelo nome de "mãe da noiva", é Doria Ragland: uma mulher que se assume.
O príncipe Harry já o tinha dado a entender numa entrevista, quando disse "she is amazing". Disse-o com tanto brilho nos olhos que fiquei curiosa para saber como será a sua sogra. Vejo-a, e penso com os meus botões que Diana se entenderia muito bem com Doria Ragland. Logo a seguir dou-me conta de que também eu fui apanhada pelo espectro de Diana, que não larga esta família.


O príncipe Carlos recebe Meghan a meio da igreja, e leva-a ao noivo. "Obrigado, pai", diz este. Quase parecem uma família igual a todas as outras. Depois, Harry levanta o véu da noiva. Ele está nervoso e comovido, ela parece muito segura e sorri-lhe com ternura. Clic, clic, fantástica fotografia.

Durante toda a cerimónia ela continuará segura e doce, ele nervoso. Em termos de preparação para as luzes da ribalta, parece que Hollywood dá 10 a 0 a Buckingham. Ou então é por ser esta mulher a noiva, e este homem o noivo, e este o casal. Vejo os gestos tranquilizadores da mão dela nas dele e só me ocorre a frase da canção de Caetano: "eu sou seu bezerro gritando mamãe".

"Harry, will you take Meghan to be your wife? Will you love her etc. etc.?"
"I will", diz ele. Uma pausa curta, ele ri-se, todos riem. Ando há dois dias a tentar compreender este momento, e a única explicação que me ocorre é que  terão ouvido dentro da igreja o eco dos aplausos entusiásticos dos milhares de pessoas lá fora. Bringing the world closer together.

A irmã de Diana lê, do Cântico dos Cânticos (onde terá aprendido a ler tão bem?):

Fala o meu amado e diz-me:
Levanta-te! Anda, vem daí,
ó minha bela amada!
Eis que o Inverno já passou,
a chuva parou e foi-se embora;
despontam as flores na terra,
chegou o tempo das canções,
e a voz da rola
já se ouve na nossa terra;
a figueira faz brotar os seus figos
e as vinhas floridas exalam perfume.
Levanta-te! Anda, vem daí,
ó minha bela amada!
(...)

Grava-me como selo em teu coração,
como selo no teu braço,
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão;
os seus ardores são chamas de fogo,
são labaredas divinas.
Nem as águas caudalosas conseguirão
apagar o fogo do amor,
nem as torrentes o podem submergir.
Se alguém desse toda a riqueza de sua casa
para comprar o amor,
seria ainda tratado com desprezo
.



Mais um cântico - aquele coro infantil é qualquer coisa! - e é dada a palavra ao reverendo Michael Curry. Sobre este sermão, leiam antes quem sabe: o Manuel Pinto, no Religionline.
Em mais de meio milénio, suspeito que as paredes daquela igreja alguma vez tenham visto algo assim. Poderosíssimas, as frases simples - por vezes até infantis - transportando o maior dos desafios. E também o à-vontade, a mímica, o humor. Impávida, a rainha ajeita as costas. A princesa Beatriz - parece ter-se esquecido que tem câmaras viradas contra ela - ri-se e espreita a reacção dos familiares. Doria Ragland anui a cada frase, deve estar a repetir "ámen!" em silêncio. Harry parece tenso, Meghan sorri. Ela, como o reverendo, é descendente dos escravos que cantavam "there is a balm in Gilead" (ouçam aqui, é lindíssimo), esses que mesmo nas trevas do cativeiro acreditavam no poder transformador do amor. Ele fala perante os nobres do Reino Unido, os descendentes daqueles que colonizaram e escravizaram. Fala-lhes de amor, do poder redentor do amor, da necessidade de reinventar o fogo: um amor que mude o mundo. Fala-lhes do futuro que está nas nossas mãos construir.

Por uns momentos pensei no pastor Christian Führer a falar das orações para a Paz que organizou na Nikolaikirche em Leipzig. No dia 9 de Outubro de 1989, dois dias depois das tensas comemorações do 40º aniversário da RDA, vieram-lhe dizer que a igreja estava cheia de membros da Stasi e do Partido Comunista, e ele alegrou-se com essa magnífica oportunidade para dar a conhecer a essas pessoas a mensagem do sermão da montanha. Do mesmo modo, o reverendo Michael Curry aproveitou o palco deste casamento mediático e deslumbrou com um sermão de cristianismo puro.    



O reverendo cala-se. No extremo oposto da igreja o Kingdom Choir começa a cantar Stand By Me. É então que reparo na magnífica luz daquele dia - a luz que transforma este momento numa sucessão de quadros vivos. A luz no cabelo prateado e no vestido de Karen Gibson, inesquecível. A luz no rosto dos cantores e nos tons pastel das suas roupas. A luz que desenha aquela maestrina, aquela maestríssima, contra o mar de chapéus de senhoras e as paredes escuras, e faz brilhar a energia da sua direcção.




Ecumenismo e quotas nas orações finais: um bispo ortodoxo copta, uma mulher negra a representar a Igreja Anglicana.

Canta-se "Guide me, O thou great Redeemer", um dos cânticos favoritos de Diana.
Harry comove-se. Este cântico também se ouviu no funeral da sua mãe, tinha ele 12 anos.

Depois da bênção final os noivos retiram-se para as assinaturas. O violoncelista Sheku Kanneh-Mason toma lugar no centro da igreja para tocar três peças.





O príncipe William escusa de me pedir para o levar à Filarmonia, que eu bem o vi na converseta com o pai durante este pequeno concerto. Já estou a imaginar a cena: nós os dois sentados nos bancos por trás da orquestra, o concerto a ser transmitido em directo pelo Digital Concert Hall, e o príncipe William a querer meter conversa comigo entre os andamentos de cada peça. Ainda me deixa ficar mal! Não, não: ele que arranje outra pessoa para o levar à Filarmonia.

À saída da igreja, a luz de novo. Aquela magnífica luz a esculpir o vestido da noiva a cada um dos seus passos.


Alguns apontamentos finais:

* Quanto mais penso no vestido da noiva, mais gosto. A princípio não consegui abstrair do que me pareceu mau corte na zona do peito e dos braços. Será que Meghan emagreceu? Que é aquilo?
Mas o vestido é todo um tratado de minimalismo e bom gosto. Do melhor que conheço dentro do género "vestido de casamento", porque se reduz ao papel de moldura para o brilho da noiva, em vez de ser a peça espampanante que tudo ofusca.

* Diana, sempre e sempre: presente até no ramo da noiva, nas forget-me-not que Harry colheu no dia anterior nos Kensington Gardens. Imagino o príncipe a juntar as flores para o bouquet e penso no cartão que escreveu com letra infantil para pôr numa coroa de flores sobre o caixão de Diana:  "mummy".
(...gritando "mamãe")

* Meghan está longe de ser um caso de rapariguinha elevada ao estrelato pelo amor de um príncipe. Neste casamento mostrou-se como uma mulher forte e confiante, entrando no casamento como uma igual e não como uma feliz eleita. Talvez até mais ainda: como o esteio deste homem que nasceu e cresceu em condições trágicas, que perdeu a mãe aos 12 anos, que teve de atravessar a adolescência e o luto sob as câmaras impiedosas dos paparazzi.

* Quotas até dizer chega: uma mulher a dirigir um coro, uma peça composta por uma mulher, uma mulher entre os religiosos que participaram na cerimónia, uma mulher a fazer a leitura da Bíblia. Um bispo negro, um coro gospel, um jovem violoncelista negro.


Em suma: queridos membros da "The Firm", bem-vindos ao futuro.


4 comentários:

jj.amarante disse...

Então a Meghan afinal sempre seguiu o seu conselho de entrar na igreja sozinha, só aceitando o braço do príncipe Carlos para aquela última parte em que o chão era aos quadrados brancos e pretos.

Teresa disse...

Tiraste-me as palavras todas, tiraste-me as coisas que queria referir neste casamento que tanto me comoveu.
A música, a música! Há sete anos, aquando do casamento dos duques de Cambridge, lembro-me de ter confessado no blogue o meu desapontamento, a música não podia comparar-se com a do casamento de trinta anos antes, o de Carlos e Diana, cuidadosamente escolhida por ele.
No sábado rendi-me, comovi-me, chorei, oh, se chorei! Porque a música era e foi, do princípio ao fim, sublime.
A luz! O sol glorioso e tão inesperado naquele clima levado do demo a iluminar a noiva a avançar pela nave.
A homilia, meu Deus,a homilia! Mas aí tenho algumas brandas admoestações a fazer, desculpa, que eu adoro a Rainha, e a senhora está com 92 anos. Menos, um pouco menos. Não na fecundidade que cala fundo das palavras, mas apenas no entusiasmo fervilhante e histriónico com que foram lançadas. Less is more.
Deixas-me as futilidades, portanto. Ora bolas! :)

Helena Araújo disse...

jj. amarante, parece que sim. A moça é mesmo inteligente, sabe seguir os conselhos de quem sabe... ;)

Helena Araújo disse...

Teresa, o casamento foi igual para todos, e eu não reservei os direitos para falar das partes melhores. Ficas à vontade para dizer com as tuas palavras o que te encantou. :)
E obrigada por confirmares que não fui a única a reparar naquela luz.
(Também reparaste nos jogos de sombra no vestido da noiva, à saída da igreja? Eu estava com cara de: "olha... um Caravaggio ambulante!")
Quanto ao sermão: sim, a rainha tem 92 anos. Mas ela está preparada para isto, e para muito mais. Basta lembrar o discurso do irmão da Diana, no funeral desta. Qualquer outro sermão seria bla bla bla nos ouvidos de centenas de milhões de espectadores. Este, não.
(Penso na rainha de 92 anos, e penso no papa Francisco, que para lá caminha, e deve ter esfregado as mãos de contente: "olha, que belo ajudante que me arranjaram ali em Windsor")