29 maio 2018

aguenta, aguenta

Ao ler o que dizem sobre a eutanásia, várias vezes me deparo com a minha fronteira de alarme contra totalitarismos, que é esta: todas as ideias são boas desde que a sua defesa não implique impor sofrimento a inocentes. Muitos dos argumentos contra a despenalização ignoram o sofrimento concreto das pessoas concretas, a sua vontade e a sua liberdade. Nesses casos pergunto-me se, em nome da defesa de um princípio, é legítimo obrigar outras pessoas a serem vítimas de um sofrimento atroz e sem perspectivas de melhoria. 

Segundo a síntese que o Público fez dos diplomas apresentados ao Parlamento, o que se está a discutir neste momento em Portugal aplica-se apenas a adultos conscientes do alcance do pedido, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal. O pedido dessa pessoa tem de ser estudado por dois ou três médicos e exige o aval da Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte. O doente tem ainda de dar o seu consentimento no momento marcado para a sua eutanásia.


Analisando os argumentos contrários a esta proposta, começo pelas fake news: ai, ui, nem pensar em aceitar esta lei, porque na Holanda já estão a dar a tal injecção atrás da orelha aos velhinhos incautos e aos adolescentes incomodados com a acne.
É fake news, não vale a pena perder mais tempo com isto.

Ouvindo as pessoas que estão no debate de forma séria, encontro dois campos opostos: os que defendem a liberdade individual de antecipar o fim que já está à vista, pondo cobro a um sofrimento indigno, violento e sem sentido, e os que dizem que o mandamento "não matarás" é inatacável e que a única solução é garantir cuidados paliativos dignos para todos. Dentro deste segundo grupo apresentam-se mais alguns argumentos aos quais sou sensível:
- Há o terrível risco de que aqueles que vivem em abandono e solidão, que sofrem de depressão ou que são vítimas de maus tratos peçam a eutanásia, e que esta lhes seja concedida por comodismo. Pergunto: a sério?
- No outro extremo, o das relações afectivas fortes e saudáveis, há o terrível risco de termos de aceitar a eutanásia de pessoas que não querem ser um peso para aqueles que amam.
- Numa sociedade em processo de envelhecimento, e com despesas crescentes nos cuidados da terceira idade, poderá criar-se a ideia de que estes custos estão a dominar o orçamento do Estado e a inviabilizar o futuro do país, criando subliminarmente a ideia de que os idosos estão a mais. Subliminarmente, ou nem por isso: afinal de contas, já houve um deputado do PSD a afirmar que "a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha". Perante tal ambiente, é provável que muitos idosos escolham morrer por não se sentirem aceites nesta sociedade. Um pequeno aparte: gostava de saber quantos dos deputados que na altura não tomaram uma posição pública clara de repúdio desta frase vão hoje votar contra a despenalização, por estarem muito preocupados com a defesa da dignidade da vida humana...

Estes últimos argumentos (pedir a eutanásia por estar a viver em condições de abandono ou maus-tratos, ou para não pesar aos familiares e à sociedade) são importantes para um debate, mas não para este debate, porque estes motivos não estão considerados no projecto de lei actualmente em discussão.

Quanto à questão "morte antecipada" versus "cuidados paliativos para todos":

- Quem ou o quê nos dá o direito de dizer "aguente, aguente" a uma pessoa que se sente escravizada por um terrível sofrimento físico sem esperança de cura, e pede ajuda para pôr cobro a essa situação?

- Há algum cinismo (ainda que involuntário, disso não tenho dúvidas) na sugestão de recusar a eutanásia porque "o que é imperioso é melhorar o sistema de saúde e alargar a rede de cuidados paliativos a todo o país e a todos". Parece aquelas pessoas que não dão de comer a um faminto porque entendem que a Segurança Social é que tem obrigação de tratar desses casos.
Trabalhemos incansavelmente para que todos os que precisarem tenham acesso a cuidados paliativos, e - em paralelo - dêmos já hoje às pessoas com doenças terminais e em situação de extremo sofrimento a possibilidade de decidir livremente.

- Tal como antes na questão do aborto, também aqui há uma situação de desigualdade: quem tem dinheiro, pode ir morrer à Suíça. Quem não tem, pois então que aguente, aguente. É a vida...

- Um último comentário para referir os profissionais da saúde que aceitariam prestar este serviço: não sei o que andará na cabeça das pessoas que os descrevem como psicopatas sedentos de morte. Pessoalmente, não tenho palavras para exprimir a minha admiração por quem é capaz de uma generosidade e um altruísmo tais que consegue superar os seus próprios sentimentos e instintos de conservação para dar a alguém a ajuda que essa pessoa implorou. 

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À margem desta discussão, e retomando os argumentos acima mencionados que não têm lugar nela, excepto numa linha retórica de "plano inclinado", foquemo-nos no caso das pessoas que, por algum motivo, vivem num sofrimento tal que pedem a morte. O facto de tal pedido exigir que vários profissionais de áreas diferentes analisem com toda a seriedade cada caso concreto poderia alertar os familiares e as instituições para a situação de sofrimento em que a pessoa se encontra. Mas enquanto se recusar a possibilidade de uma pessoa pedir que a matem por compaixão, o mais provável é que as suas queixas continuem sem ser ouvidas, e seja obrigada a aguentar situações terríveis de abandono, de falta de perspectivas e/ou de maus tratos que vão desde a negligência à violência física e psíquica. Ou seja: é condenada a viver em sofrimento sem ser ouvida, por uma sociedade que põe o valor da vida muito acima do da qualidade da vida. Analisando a questão por esta perspectiva, a possibilidade da eutanásia representaria uma ameaça ao comodismo e à boa consciência: já não seria tão fácil ignorar o sofrimento em que algumas pessoas vivem.

Por outras palavras: o mandamento "não respeitarás a vontade de quem te implora ajuda para morrer" só pode vir depois de termos feito todos os possíveis e os impossíveis para que essa pessoa sinta que a sua vida ainda tem sentido apesar das suas circunstâncias. Sem isso, a proclamação do valor absoluto da vida corre o risco de não ser mais do que palavras ocas, egoístas e comodistas. Pior ainda: escravizadoras e totalitárias. 


3 comentários:

Manuel Rocha disse...

Absolutamente !

Porém, parece-me ter deixado um problema por abordar: a partir do momento em que a eutanásia seja um direito, passa a ser também um dever, pois "alguém" terá de prestar esse "serviço". Institucionalizá-lo na base do voluntariado, tem sido o expediente encontrado. Mas e se não houver voluntários ?

Cump.

MRocha

Goldfish disse...

É terrível pôr a nossa vontade à frente da vontade dos outros, quando essa vontade em nada prejudica o outro. Adorei o "pôr o valor da vida muito acima do da qualidade de vida".

Helena Araújo disse...

MRocha,
quando não houver voluntários, logo se vê. Não tenho notícia de isso ser algum problema nos países onde a eutanásia é aceite.