01 dezembro 2017

o aqui, o aí, o ali e o além

O Carlos Vaz Marques desabafou no facebook sobre o modo como nas redes sociais, a seguir à notícia da morte de alguém, há uma onda de cartas abertas dirigidas ao falecido.

"Admito que seja um atavismo meu. Talvez uma embirração desproporcionada. Mas não suporto. É-me mesmo incomodativamente desagradável. Não há pachorra para gente que fala com mortos no Facebook. Isto de, a cada falecimento, ter hordas de gente a deixar aqui cartas abertas ao falecido incomoda-me. Ó coisinho, até breve. Havemos de nos encontrar um dia destes. Onde quer que estejas. Até sempre. Não. Até nunca. Deixem os mortos em paz. Poupem nas litanias. Eles já não vos ouvem. É capaz de ser essa a vantagem de estar morto. Já não vão poder chateá-los mais. A sério: deixem os mortos em paz, pá."

Percebo o desabafo, mas parece-me muito século XX...
Noutros tempos, quando falávamos com as pessoas olhos nos olhos e em voz relativamente baixa para não sermos ouvidos por terceiros, e não exibíamos com tanto à-vontade a nossa vida e o que nos passava pela cabeça, talvez a maneira mais frequente de homenagear um morto fosse ir à sua campa fazer um monólogo em silêncio.
Mas o facebook, onde cada um escreve - e vive - o que lhe apetece sem saber quem está do outro lado a ler, mudou a nossa forma de comunicar.
Habituámo-nos a enviar para o desconhecido sinais do que estamos a pensar e é importante para nós.
Mais complexo ainda: o facebook está cheio de mortos e avisa-nos sobre o seu aniversário; as pessoas escrevem mensagens no mural dos amigos mortos, dizendo-lhes como sentem a sua falta, etc.
Se olharmos com atenção, vemos que no facebook as fronteiras entre o aqui, o aí, o ali e o além estão a perder os contornos.
No estado actual da comunicação entre as pessoas, seria quase surpreendente que alguém se lembrasse de homenagear um morto indo simplesmente à sua campa dar livre curso aos pensamentos. Sem selfie no cemitério nem nada...
Pessoalmente, o que me incomoda mais são os ripanços. Um gajo desunha-se a fazer pela vida, deixa obra, muda o mundo, e no fim despacham-no com um RIP no facebook?! Entretanto, parece que o RIP-RIP está a sair de moda, e agora é mais falar para quem partiu. A ver o que inventam no ano que vem.
Em todo o caso: este apontamento do Carlos Vaz Marques é um contributo válido para o metafacebookismo. Mesmo que fosse só por isso já teria valido a pena.


E depois, estamos no facebook. Cada um diz o que quer. Vale tudo, excepto mamas.

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Já que estou numa de metafacebookismo, acrescento um comentário a esse post, sobre 
um outro fenómeno curioso, o de usarem um morto como desculpa para falarem de si próprios:

"O Coiso morreu.

Eu recordo muito bem a primeira vez que nos vimos.
Eu estava a fazer aquelas coisas que me fazem fantástico. O Coiso estava lá.
Eu agora vou aproveitar para contar uma história engraçada que me aconteceu.

Eu, um dia, contei essa história ao Coiso.
Eu sei que tive um impacto fantástico na vida do Coiso e o Coiso deve estar imensamente grato por me ter conhecido.
Eu devo ter sido a melhor coisa que apareceu na vida do Coiso.

O Coiso morreu. Vai fazer uma falta do caraças."



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