09 dezembro 2017

"nome"

A palavra de ontem na Enciclopédia Ilustrada era "nome".
Usando o blogue para arquivar o que aparece e desaparece na voragem do facebook, aqui deixo dez contributos. Os primeiros quatro são meus. Os outros seis foram roubados aos colegas de enciclopédia - para mais tarde recordar. 


I.
Um detalhe curioso na passagem de Portugal para a Alemanha foi ter deixado de ser a Dra. Helena, para passar a ser a Frau Araújo. Em Portugal, geralmente trata-se uma mulher pelo nome próprio; na Alemanha, é pelo nome de família.
Quando estava para casar, e tinha de decidir se mantinha o meu apelido ou passava a usar o do meu futuro marido, não tive dúvidas: se aceitasse o apelido dele, ia passar a ser a minha sogra! Nem pensar.
Entretanto a lei mudou. O homem pode ficar com o apelido da mulher, e perde o seu, ou o casal adopta a combinação dos apelidos dos dois. Mas há preconceitos em relação às pessoas que têm apelidos compostos (tipo Müller-Mayer): têm fama de ser complicadas e implicativas.
(Este é o momento em que me perguntarão quantos apelidos tenho. Tenho quatro - nada de piadinhas, ouviram? - mais dois nomes próprios. Nem queiram saber o trabalho que tive para aprender os meus nomes todos, ali pelos meus 3, 4 anos. Mas nenhum deles é alemão. Tivesse eu caído nessa asneira, ficava com um nome só. E não era o meu. E todo aquele trabalhinho infantil teria sido em vão.)

 

II.Num estudo na Universidade de Oldenburg, no qual foram entrevistados 500 professores da escola primária, concluiu-se que os alunos podem ser vítimas dos preconceitos dos professores relativamente ao seu nome próprio:

- certos nomes próprios são conotados com determinadas classes sociais;
- os professores associam certos nomes próprios a miúdos que dão mais trabalho e/ou têm aproveitamento pior na escola (como dizia um professor: "Kevin não é um nome, é um diagnóstico")
- muitos professores dão notas diferentes conforme o nome próprio do aluno - sete erros num Kevin dá direito a uma nota pior que sete erros num Alexander.
(Artigos sobre o tema, em alemão: 1 e 2.)




 

III.


A canção e o poema que conheci quando puseram na minha rua placas com o nome de cada um dos judeus que foram levados das suas casas para os campos de concentração.
(contei já milhentas vezes neste blogue, por exemplo aqui, aqui, aqui e aqui)

Para cada pessoa há um nome
outorgado sobre ela por Deus,
a ela dado pelos seus pais.


Para cada pessoa há um nome
concedido pela sua estatura
e pelo seu sorriso
e pela sua forma de vestir.

Para cada pessoa há um nome
vertido pelas montanhas
e pelas paredes que a circundam.

Para cada pessoa há um nome
dado pela roda da Sorte
ou por aquilo que os vizinhos lhe chamam.

Para cada pessoa há um nome
inscrito pelas suas falhas
ou pelos seus desejos.

Para cada pessoa há um nome
entregue pelos seus inimigos
ou pelo seu amor.

Para cada pessoa há um nome
derivado das suas celebrações
e da sua ocupação.

Para cada pessoa há um nome
apresentado pelas estações
e pela sua cegueira.

Para cada pessoa há um nome
que ela recebe dos mares
e que lhe é dado pela sua morte.

-- Zelda Schneurson Mishkovsky


 
IV.

“When someone loves you, the way they say your name is different. You just know that your name is safe in their mouth.” – Billy, age 4


Dos estimados colegas:

V.
Por causa de um nome
Excuso-me de referir aqui a importância de Carlos Viegas Gago Coutinho, um dos pioneiros da aviação mundial e investigador de História Náutica. Muito organizado, quando morreu tinha já uma pedra tumular preparada, onde só faltava gravar o último algarismo, tendo escolhido para o seu túmulo a seguinte inscrição:
Gago Coutinho - Geógrafo.
1869 - 195
Eu tinha 21 anos quando li esta história e comentei com o meu namorado:
- É isto mesmo que eu quero na minha sepultura:
"Ana Pires - Geógrafa"
Vai daí ele pergunta-me "Então e XXXX de ZZZZZ?" que era o #nome de família dele.
- Eu não vou ser a Srª XXXX de ZZZZZ...
E não é que logo ali acabou um namoro de 3 anos?

(passados muitos anos contei isto em família e a minha Mãe disse: Oh, filha, o Gago Coutinho tinha fama de ser um "tombeur de femmes", as damas não lhe resistiam e deu cabo de alguns casamentos, o teu namoro terá sido a última baixa...)
Obs. fiquei muito grata ao Gago Coutinho


VI.

Shakespeare falou sobre "nome" - quando o nome da família atrapalha, em lugar de ajudar:
**********************************
JULIETA - Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se
não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.

ROMEU (à parte) - Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo?
JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não
fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença
ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação
teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição
que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.
ROMEU - Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em diante não serei Romeu.

 

VII.



The Naming of Cats, T. S. Eliot

The Naming of Cats is a difficult matter,
It isn't just one of your holiday games;
You may think at first I'm as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.
First of all, there's the name that the family use daily,
Such as Peter, Augustus, Alonzo or James,
Such as Victor or Jonathan, George or Bill Bailey—
All of them sensible everyday names.
There are fancier names if you think they sound sweeter,
Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter—
But all of them sensible everyday names.
But I tell you, a cat needs a name that's particular,
A name that's peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
Or spread out his whiskers, or cherish his pride?
Of names of this kind, I can give you a quorum,
Such as Munkustrap, Quaxo, or Coricopat,
Such as Bombalurina, or else Jellylorum-
Names that never belong to more than one cat.
But above and beyond there's still one name left over,
And that is the name that you never will guess;
The name that no human research can discover—
But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.
When you notice a cat in profound meditation,
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name:
His ineffable effable
Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.



VIII.
Quando li a palavra mágica do dia, "nome", a primeira coisa em que pensei foi no uso de uma palavra, já que as palavras dão nome às coisas. Os judeus não usam o nome de Deus para se referirem a Ele. Ou seja, não se usa o nome do nome de Deus, em respeito ao terceiro mandamento. E aí me lembrei deste poema de Adélia Prado, 'Antes do Nome', que fala do lugar de onde nascem os nomes: a linguagem.

ANTES DO NOME I ADÉLIA PRADO

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


IX.
"nome"
a antonin artaud
I
Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus
……….de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida…..puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito…..eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes…..mais vulneráveis…..da matéria
Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso
……….e cantante» suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse…..realmente…..o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
II
Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios…..nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe…..ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste…..de martelo na mão
Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
Haverá
um acordar
Mário Cesariny


 X:






Rui Knopfli, Inominado nome, O Corpo de Atena

Persigo-o no ininteligível arbítrio
dos astros, na clandestina linfa
que percorre os túrgidos corredores
do indecifrável, nos falsos indícios
que, de fogos fátuos, escurecem

a persistente incógnita do nome.
Em persegui-lo persisto onde, bem
sei, não lograrei achá-lo, que nunca
achado será em tempo ou espaço
que excedam meu limite e dimensão.

Um #nome, ainda obscuro, pressinto
no sal da boca amarga, Conheço-lhe
o rosto familiar, desfocado embora,
no halo do tempo e da distância.
É, creio, a face indefectível de tudo

quanto tenho de calar. Este nome
(este rosto) habita-me silente, contra
a recusa, a mentira, ou a calúnia.
Na epiderme, nos nervos e na carne,
sobre a língua e o palato, adivinho-lhe

forma, sabor e propósito. Ouço-o
dentro de mim, mau grado
o queira ou não, que em mim
só está sofrê-lo porque em mim
vive e dura, enquanto eu dure e viva.

E não por meu mal, que meu
mal seria, mais que perdê-lo,
sem ele viver.
Um rosto persigo,
um #nome guardo no sal da boca

amarga, na pedra árdua da memória,
no discurso penosamente reiterado
do sangue. Nenhum silêncio
lhe dará cobro, nem fim que
não sejam meu fim e meu silêncio.




1 comentário:

jj.amarante disse...

Receio já ter contado isto mas aqui vai outra vez:

A forma de tratamento é muitas vezes um assunto delicado. Há quem se queixe do caso português mas creio que não se queixam dos hábitos dos outros países porque não os conhecem com o detalhe suficiente. Uma vez ao explicar a um Tunisino porque eu tinha tantos nomes, designadamente dois nomes próprios, avancei a conjectura que sendo o país tão católico gostavam de usar os nomes de José para os rapazes e de Maria para as raparigas. Depois era preciso um segundo nome para os distinguir. Ele disse-me que também no mundo muçulmano era hábito dar o nome de Maomé aos rapazes, atribuindo-lhes nesse caso um segundo nome para os poderem admoestar quando faziam asneiras pois seria blasfemo dizer por exemplo "Ó Maomé não faças disparates!".