02 outubro 2017

lutar contra o ódio no quotidiano

Sob o choque do massacre em Las Vegas, e sem saber ainda o que levou aquele tresloucado a cometer tamanho crime, volto à questão primordial dos mecanismos da nossa sociedade que semeiam e alimentam o ódio no quotidiano.

Um dos meus desafios é ser capaz de encontrar as palavras certas para tirar a carga de violência a uma situação. Muito mais importante que "meter as pessoas na ordem" é conseguir escapar à lógica do ódio. É difícil, e raramente consigo. Permanece um desafio. Algumas histórias, a propósito:

I. Já contei esta várias vezes: num retiro, durante uma refeição duas pessoas começaram a conversar sobre música clássica. Às tantas, uma delas exclamou em voz demasiado alta:
- O quê?! O senhor não conhece Brahms?!
O senhor que não conhecia Brahms ficou muito enfiado, a morrer de vergonha. A sala encheu-se de um silêncio desconfortável. E então, outra pessoa disse:
- Vejo que gosta muito de Brahms. Quer-nos contar algumas coisas sobre ele? Qual é a sua sinfonia favorita?

II. Há dias a Christina contava-me que vinha de noite num autocarro e reparou que havia um passageiro de pele escura, provavelmente embriagado, que estava a dormir. Estavam a chegar ao fim da linha, e ela decidiu ficar por perto para ver o que acontecia. Viu o motorista dirigir-se ao passageiro, viu que o chamava aos gritos, e que assobiava. Quando ouviu o barulho de uma pancada forte voltou para o autocarro e pôs-se a olhar, para impedir que o motorista fosse violento. Conversámos sobre isso, e concluímos que não basta olhar. Melhor teria sido ela dizer ao motorista: "tem aqui um passageiro adormecido - deixe estar, que eu acordo-o para ele sair".
"Dar o exemplo", rematou ela.


III. No metro, reparei em duas miúdas de hijab. Uma delas tinha dois balões de hélio - um 1 e um 8. Provavelmente faria 18 anos nesse dia. A outra mexeu na bolsa, e deixou cair ao chão dois lenços de papel usados. Olhei para o lixo no chão, pensei coisas feias que não repito aqui. Ela reparou nos lenços, apanhou-os do chão e pousou-os no banco. Voltei a pensar coisas feias, e senti-me mesquinha: não sabia se a miúda ia deixar o lixo ali ou o levava com ela no fim da viagem, mas já estava a pensar o pior possível dela. E o hijab ajudava a aumentar o fosso da desconfiança: "estes estrangeiros que não respeitam os costumes do país!"
Decidi mudar de atitude. Ao sair, sorri à miúda dos lenços, expliquei que ia deitar fora um saco de papel e se quisesse podia levar também o lixo dela. Ela meteu o lixo no meu saco, e eu dei os parabéns e desejei um belíssimo dia à miúda que fazia anos, que me sorriu com um ar feliz.

IV. Há vários anos, quando ainda morava em Weimar, vi três rapazes a gritar a uma mulher. Um deu-lhe uma bofetada. Atravessei a rua furiosa, ia ralhar, mas enchi-me de medo das consequências, e lembrei-me também de como os meus filhos me gozavam quando ralhava com eles em alemão. De modo que optei por uma frase minimalista: "que é que se está a passar aqui?"
Um dos rapazes veio ter comigo e explicou o que se tinha passado. Eles estavam a conversar em frente à loja, e a mulher quis mandá-los embora, dizendo que não podiam estar ali. A discussão descambou para a bofetada que eu vira. Dei-lhe razão, ela não tinha direito de os tratar assim, mas eles também não lhe podiam bater. Deu-me razão. Daí a nada, os três foram-se embora.
Por causa de não me sentir em casa no idioma deles, em vez de ralhar fiz perguntas. Foi por acaso, mas consegui desfazer uma situação de violência.

V. No sábado, a caminho do supermercado, reparei num homem que estava a mandar vir com dois sentados numa esplanada. "A minha vontade era partir isto tudo!", gritava ele. E um dos homens, sentado, dizia-lhe com voz grossa: "desapareça daqui! Eu quero tomar o meu pequeno-almoço em paz!"
O homem afastava-se, e daí a nada voltava outra vez: "Estou com uma fúria tal que era capaz de partir tudo! Era o que vocês mereciam todos!"
E o outro: "Vá-se embora! Deixe-nos em paz!"
Ando há dois dias a pensar que devia ter ido falar com o furioso: "O senhor está mesmo zangado! Acha que se eu lhe oferecer um cappuccino se vai sentir melhor? Prefere um chá? Uma água fresca?"


5 comentários:

Filipa disse...

Aquele tresloucado enquadra-se no perfil de outros tantos tresloucados estado-unidenses que cometem crimes semelhantes. Não é um caso isolado.

Há uma cultura de violência nos Estados Unidos, cultura essa que alimenta a venda de armas. Não me parece que tal possa ser contrariado por actos gentis no quotidiano.

Muitos eleitores de Trump até poderiam ter a sua amabilidade é isso não os impediu de votar no Trump, o qual emitiu decretos-lei que retiram a necessidade de, por exemplo, verificar a saúde mental dos compradores de armas automáticas.

E acha mesmo que os rapazes que agrediram a mulher fariam a mesma coisa se estivessem a discutir com um homem?

Lipe disse...

Comunicação não violenta. É uma técnica, aprendesse, aprefeiçoasse.deveria de ser ensinada a todos os cidadãos.

Lipe disse...

Comunicação não violenta. É uma técnica, aprendesse, aprefeiçoasse.deveria de ser ensinada a todos os cidadãos.

Helena Araújo disse...

Lipe, concordo.

Helena Araújo disse...

Filipa, não tenho como mudar o mundo inteiro. Mas tenho como não piorar ainda mais o bocadinho à minha volta. E já é nada mau se houver muitas pessoas a escolher estar no mundo de forma pacífica, e a dirigir-se assim aos outros.

Não sei o que fariam os rapazes se estivessem a discutir com um homem. De facto, a única coisa que me interessa nesta história foi ter percebido que uma entrada humilde ajudou a resolver aquela cena de violência.