06 junho 2017

excesso de delicadeza

No sábado passado fomos ao concerto da Nina Hagen no teatro de Brecht (a ver se conto ainda hoje) e a Christina levou um amigo sírio, que é músico.

Aviso já: aquele homem cativou-me desde o primeiro instante. Tem um ar sensível, um sorriso aberto, e é extremamente bem-educado. É um músico muito bom, mas quando toca com a Christina não tenta nunca pôr-se em primeiro plano - um excelente team-player: atento, competente, sensível, delicado.

E foi justamente sobre a sua delicadeza que falámos no fim do concerto da Nina Hagen. Sem querer, ele tinha dado um pontapé numa caneca de cerveja vazia pousada na borda do passeio. O meu marido pegou na caneca e pousou-a na mesa mais próxima dessa esplanada, avisando as pessoas lá sentadas que o fazia para evitar que se partisse e se espalhassem cacos pela rua. O nosso amigo sírio sorriu às pessoas dessa mesa e fez-lhes uma vénia profunda para agradecer a boa vontade.

Assustei-me. Pensei que este homem se vai dar mal na sociedade alemã, que é muito directa e tem "mentalidade de cotovelo" (no sentido de acotovelar os outros para passar à frente). A sua delicadeza vai parecer submissão, vão-no comer vivo, pensei.

Disse-lhe: tu és demasiado bem-educado para os berlinenses.
Respondeu: achas? É a minha maneira de estar neste mundo. Semeio sorrisos. Se as pessoas sorrirem de volta, fico contente. Se não aceitarem o meu gesto, paciência. Mas vale a pena tentar.

Avisei-o para estar muito atento, não fosse dar-se o caso de alguém confundir boa educação com atitude submissiva - e ainda agora estou a pensar nessa conversa. Devia ter-lhe dito? Devia ter ficado calada? E como será ser refugiado num país europeu? Se for como os berlinenses (directo, um pouco abrutalhado, competitivo) vão dizer que é mal-agradecido, impositivo e malcriado. Se for extraordinariamente polido, como é, não o vão respeitar. E alguns até são capazes de desconfiar de tanta simpatia, por não bater certo com o preconceito "refugiado = machista que trata mal as mulheres = terrorista".

De cada vez que falo com ele, meto água. Por exemplo, quando vínhamos a regressar do concerto deles em Leipzig, e me perguntou o que achava da sua casa. A casa dele foi em tempos uma loja. A única janela que tem é a da montra, pintada de branco. Normalmente vivem lá quatro pessoas, mas se aparecem outros refugiados a pedir abrigo, também lá ficam. E muitas vezes os meus filhos vão fazer música com eles no estúdio da cave, e dormem ali em vez de voltarem para casa a meio da noite. Os meus filhos e o Fox, que é a mascote deles todos. Disseram-me, a rir, que a segunda língua do Fox é o árabe.

Perguntou o que é que eu acho da sua casa, e eu fiquei sem saber como dizer que acho horrível terem um quarto com os vidros pintados de branco, e uma cozinha sem janelas. De modo que balbuciei: "é bom ter uma casa assim grande e com espaço para acolher os amigos, mas gostava de vos ver numa casa com mais luz e ar fresco..." e acrescentei muito depressa que era uma grande sorte poderem ter o estúdio na cave onde dantes era o armazém da loja.

Ele com excesso de boa educação, eu com excesso de sinceridade. Cada qual carrega a sua idiossincrasia.


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