Tarde e a más horas - de facto, à hora a que devia estar a propor a palavra do dia seguinte - escrevi sobre o Neues Museum de Berlim:
Antes
que alguém ponha aí a palavra mágica de hoje, deixem-me fazer uma
incursão daquelas do género pensar em voz alta (e escrever mais depressa
do que se pensa) (como é que me aturam isto?!) no tema #preservação
e museus, com o exemplo do Neues Museum ("museu novo") em Berlim. Foi
construído na Ilha dos Museus, por trás do Altes Museum ("museu velho"),
quando este começou a rebentar pelas costuras. (Muito gostava eu de
saber o nome do "museu velho" antes de ter sido criado o novo. É que
duvido que se chamasse assim desde o princípio, e que os jornais
noticiassem "ontem o Kaiser presidiu festivamente ao lançamento da
primeira pedra do Museu Velho".) (Ai! Ainda nem comecei e já estou a
divagar!)
Adiante. O Neues Museum foi construído em meados do séc. XIX, para albergar as colecções egípcia, grega, etnológica e pré-histórica, entre outras, que já não cabia no primeiro museu da Ilha. O arquitecto resolveu decorar as salas à maneira do mundo de onde a colecção tinha vindo. Ou melhor: à maneira da ideia que tinha desse mundo. O que fez com que o museu preservasse algumas ilusões europeias sobre países longínquos. Foi muito criticado por isso, porque à data da decoração do edifício já se conhecia um pouco mais desses outros mundos e já se sabia que aquela encenação estava toda errada. Além disso, tornou muito mais difícil rearranjar as colecções dentro do museu, porque a bota deixava de casar com a perdigota.
Uma das colecções, como disse, era a egípcia. A Nefertiti, por exemplo, que foi trazida para Berlim por conta de um truque do arqueólogo (que cobriu a escultura com lama, e a descreveu como "busto de mulher"). Quando descobriu a traição, o Egipto começou um protesto que já vai no segundo século. Depois, muitos anos mais tarde, quando houve notícias de quererem saquear o Museu do Cairo, aqui a artista pensou "ai! ao menos a Nefertiti está em sítio seguro - chegou aqui por vias desonestas, mas sempre está mais preservada". Isto é aqui a artista quando sente em vez de pensar, e mais o político americano que disse sensivelmente o mesmo quando o Museu Nacional do Iraque foi saqueado. Quem nos preservasse aos dois num frasco de pickles exibido nas feiras...
O Museu Novo foi duramente atingido pelos bombardeamentos da segunda guerra mundial. Quase metade do edifício foi destruída, e a outra metade ficou muito danificada. A ruína foi ficando por ali (coitada, não tinha mais para onde ir) até à reunificação. O arquitecto encarregado da reconstrução/construção decidiu preservar todas as memórias do edifício, e construir a partir daí. Deixou ficar tudo o que estava sem fazer retoques ou melhoramentos (desde o que restava dos adornos orientalistas aos buracos das balas e explosões nas paredes) e construiu o que faltava com materiais e estética contemporâneos. A população de Berlim dividiu-se: uns diziam que este projecto era genial, outros protestavam porque queriam ver o seu querido velho Museu Novo tal e qual como tinha sido feito cento e cinquenta anos antes. Estes últimos devem estar agora todos contentes com o pastiche monumental que fizeram do outro lado da praça: construíram um edifício que repõe a fachada do palácio do Kaiser (que foi destruído pelo regime da RDA e desmantelado até à última pedra, até só sobrar o terreno). Que sentido fará a preservação de uma imagem histórica com um edifício de betão, a fazer de conta que é um palácio barroco? Até parece o Nikolaiviertel, do lado de lá do rio, com casas a imitar as medievais, que lá estavam no princípio desta cidade, mas em blocos de betão pré-fabricados.
Ora bem: não há aí ninguém que me mande parar? É que isto de viver em Berlim dá milhentas histórias sobre preservação. E se não me param, o que vou ter de pagar em minis(*) é o bastante para desgraçar o fígado de todos os enciclopedistas juntos. Ora, o fígado é um órgão que se quer bem preservado. Portanto, calar-me agora é uma questão de saúde pública.
(*) Na Enciclopédia Ilustrada, as multas são pagas em minis.
Adiante. O Neues Museum foi construído em meados do séc. XIX, para albergar as colecções egípcia, grega, etnológica e pré-histórica, entre outras, que já não cabia no primeiro museu da Ilha. O arquitecto resolveu decorar as salas à maneira do mundo de onde a colecção tinha vindo. Ou melhor: à maneira da ideia que tinha desse mundo. O que fez com que o museu preservasse algumas ilusões europeias sobre países longínquos. Foi muito criticado por isso, porque à data da decoração do edifício já se conhecia um pouco mais desses outros mundos e já se sabia que aquela encenação estava toda errada. Além disso, tornou muito mais difícil rearranjar as colecções dentro do museu, porque a bota deixava de casar com a perdigota.
Uma das colecções, como disse, era a egípcia. A Nefertiti, por exemplo, que foi trazida para Berlim por conta de um truque do arqueólogo (que cobriu a escultura com lama, e a descreveu como "busto de mulher"). Quando descobriu a traição, o Egipto começou um protesto que já vai no segundo século. Depois, muitos anos mais tarde, quando houve notícias de quererem saquear o Museu do Cairo, aqui a artista pensou "ai! ao menos a Nefertiti está em sítio seguro - chegou aqui por vias desonestas, mas sempre está mais preservada". Isto é aqui a artista quando sente em vez de pensar, e mais o político americano que disse sensivelmente o mesmo quando o Museu Nacional do Iraque foi saqueado. Quem nos preservasse aos dois num frasco de pickles exibido nas feiras...
O Museu Novo foi duramente atingido pelos bombardeamentos da segunda guerra mundial. Quase metade do edifício foi destruída, e a outra metade ficou muito danificada. A ruína foi ficando por ali (coitada, não tinha mais para onde ir) até à reunificação. O arquitecto encarregado da reconstrução/construção decidiu preservar todas as memórias do edifício, e construir a partir daí. Deixou ficar tudo o que estava sem fazer retoques ou melhoramentos (desde o que restava dos adornos orientalistas aos buracos das balas e explosões nas paredes) e construiu o que faltava com materiais e estética contemporâneos. A população de Berlim dividiu-se: uns diziam que este projecto era genial, outros protestavam porque queriam ver o seu querido velho Museu Novo tal e qual como tinha sido feito cento e cinquenta anos antes. Estes últimos devem estar agora todos contentes com o pastiche monumental que fizeram do outro lado da praça: construíram um edifício que repõe a fachada do palácio do Kaiser (que foi destruído pelo regime da RDA e desmantelado até à última pedra, até só sobrar o terreno). Que sentido fará a preservação de uma imagem histórica com um edifício de betão, a fazer de conta que é um palácio barroco? Até parece o Nikolaiviertel, do lado de lá do rio, com casas a imitar as medievais, que lá estavam no princípio desta cidade, mas em blocos de betão pré-fabricados.
Ora bem: não há aí ninguém que me mande parar? É que isto de viver em Berlim dá milhentas histórias sobre preservação. E se não me param, o que vou ter de pagar em minis(*) é o bastante para desgraçar o fígado de todos os enciclopedistas juntos. Ora, o fígado é um órgão que se quer bem preservado. Portanto, calar-me agora é uma questão de saúde pública.
(*) Na Enciclopédia Ilustrada, as multas são pagas em minis.
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