17 março 2017

one man show



Ontem foi um daqueles dias em que tive pena de todas as pessoas que não falam alemão. Fui com o Matthias a um bairro amoroso de Berlim, Köpenick - se querem saber tudo: estivemos na Liberdade de Köpenick, que se chama assim porque ali viviam os huguenotes, livres de impostos e serviço militar (sim, já há 300 anos os franceses tinham tratamento preferencial no que dizia respeito ao cumprimento das regras dos europeus...) -, para assistir a uma sessão de "Wladimir Kaminer ao vivo".

Este escritor é um show: ainda não tinha começado a falar dos livros, e a sala já estava a rir como nos melhores programas humorísticos. E não era para menos: começou por anunciar com orgulho e pompa que não precisava de microfone, porque estava a usar uma técnica muito mais moderna, e logo a seguir o microfone e a técnica moderna começaram a pregar rasteiras um ao outro, ora funcionavam ambos ora não funcionava nenhum. Onde outros ficariam aflitos e chamariam o técnico, o Wladimir Kaminer usou os contratempos para fazer humor.

Resolvida essa questão, desatou a contar histórias naquela sua mistura tão própria, entre o hesitante e o entusiasta, que põe a sala suspensa da frase seguinte, com as suas pausas medidas ao milímetro, com as saídas mais inesperadas e o humor lacónico. E nós todos hohoho hahahahaha hehehehe.


Mais ou menos assim:

- Era suposto na primeira parte da palestra ler histórias do livro sobre a minha mãe, para depois no intervalo vocês irem ao fundo da sala comprá-lo, mas o que me apetece mesmo é contar sobre os cruzeiros que a Olga e eu fizemos. Ando a escrever um livro sobre isso, é um mundo fascinante. Convidaram-me para fazer o cruzeiro, com a condição de fazer três palestras. Pareceu-me um bom negócio. Bem me enganei! É que nas palestras habituais, como a de hoje, eu chego ao fim e vou para casa...
Falou da viagem à Grécia, leu uma história sobre uma excursão com passeio entre olivais e almoço num restaurante típico com danças ao vivo, que afinal foi sem passeio porque chovia a potes, a cozinheira era ucraniana, o bailarino típico era búlgaro e os irmãos dele estavam nas ruínas gregas vestidos de deuses a fazer selfies com turistas pagantes, e todos eles estavam zangados com os refugiados que lhes queriam roubar o trabalho de fazer de conta que eram gregos antigos.

- Eu queria escrever um livro sobre os refugiados. O meu editor disse que nem pensar, que ninguém ia ler isso. Eu bem queria fazer-lhe a vontade e falar de outros assuntos, mas para onde quer que vá encontro refugiados!

Daí a nada estava a falar da filha, a Nicole, que começou a estudar - pausa, olhos semicerrados, suspense, e aquele leve sorriso trocista:
- Etnologia Europeia. Alguém sabe o que isso é? Eu não, a minha filha também não, e desconfio que nem os professores sabem. Ou então sabem, mas combinaram não revelar a ninguém. A Nicole teve de fazer um trabalho de campo. Num bar em Neuköln. O título que deu ao seu trabalho faria a inveja de qualquer escritor: "o medo do investigador perante o objecto de estudo".
O Sebastian, o filho, ainda está no secundário:
- Andamos há duas semanas a preparar-nos para o Abi. Sabem, o problema da escola são os professores. Os alunos chegam lá estouvados, ganham juízo, mudam. Os professores não mudam! E não se dão conta de que os alunos mudaram. Por isso, a escola dos meus filhos dá-me muito trabalho. E o pior é quando os professores não reconhecem o meu esforço! Há tempos, um professor deu "medíocre" a um texto que me deu imenso trabalho, sobre Gerhart Hauptmann. E ainda teve o desplante de escrever: "Sebastian, tu consegues fazer melhor!"

Passou enfim para a mãe. Não sem antes hesitar, porque o que lhe apetecia mesmo era ler uma história do livro que acabou de sair, Goodbye Moscovo, sobre o fim da União Soviética.
- Nós vivíamos com os olhos no futuro, que era o nosso objectivo. Um belo dia os políticos reuniram-se, resolveram desistir do futuro, e também não querem falar do passado. Deixaram-nos assim suspensos no tempo, sem passado nem futuro. Mas vou ler uma história do livro da minha mãe. Vou ler a história que dá o nome ao livro: a minha mãe, o gato e o aspirador.

A história é deliciosa. E Kaminer, a descrever o gato enorme e selvagem ao colo da mãe, a deixar-se acariciar por esta, e a imitar os olhos de assassino que lhe faz a ele: um mimo!

- A minha mãe tem a televisão sempre ligada nas notícias russas. Oh, ultimamente os russos andam felizes! É a primeira vez em décadas que puderam eleger um presidente. Bom, não foi o do seu próprio país, mas isso é um detalhe. A televisão da minha mãe está sempre no máximo, porque ela está um bocado surda, e tentou usar os aparelhos de surdez do meu pai, mas não se deu bem. De modo que outro dia um vizinho - o que mora no andar entre o meu e o da minha mãe - veio-se queixar que não tinha coragem de entrar na cozinha dele, porque tinha a sensação que o Putin agora vivia lá.

Depois do intervalo decidiu ler um dos capítulos do próximo livro que vai escrever, desta vez sobre a Olga. Leu uma história que metia guardanapos lindos de morrer, brancos com bordado azul, que a Olga comprou em Portugal, depois de muito hesitar porque eram caríssimos, e por isso mesmo os guardanapos ideais para mostrar aos convidados da festa de fim-de-ano que os considera pessoas muito especiais. De regresso a casa, a Olga guardou os guardanapos portugueses cuidadosamente no fundo do armário, e foi buscá-los quando chegou o dia 31 de Dezembro. Mas ao olhar para eles, tão brancos e tão bonitos, começou a pensar no estado em que ficariam depois de a Katia dançar em cima da mesa, o Dimitri limpar a salada do cabelo depois de ter adormecido para dentro da saladeira, e uma artista cujo nome não revelo entornar o copo de vinho tinto. De modo que os guardanapos foram outra vez para o fundo do armário, e aos convidados foram dados outros, de papel. Todos os anos a cena se repete: a Olga vai buscar os guardanapos, olha-os longamente, faz-lhes umas festinhas, e guarda-os de novo. Eles devem viver felizes naquele seu refúgio - porque o que é realmente importante na vida é ter quem nos ame.

E chegou enfim a vez de um capítulo de "Goodbye Moscovo". Quer dizer: ia ler, mas depois lembrou-se de outra história:

- Na Rússia só traduziram dois livros meus. Já a Finlândia, traduziu-os todos. Até aquele sobre o período em que tivemos um talhão nas hortas comunais, de onde fomos expulsos devido a - pausa, sorriso trocista, cara de reticências - "vegetação espontânea". E pensava eu que este fenómeno dos Schrebergärten e da obrigatoriedade de plantar ruibarbo era uma problemática que só interessava aos alemães! Estive lá numa feira do livro, e a antiga presidente da República falou-me dos talhões e do ruibarbo. Contei-lhe que tinha a cave cheia de frascos de compota de ruibarbo caseira, porque os leitores desataram a mandar frascos da sua produção para tentar convencer-me que o problema não era do ruibarbo, era meu. Ela disse que lhe aconteceu algo semelhante: quando foi eleita, e lhe perguntaram se ia deixar de fazer algumas das coisas que até então fazia para a família, ela respondera que provavelmente não teria tempo de tricotar meias - que é, pelos vistos, uma tradição finlandesa. De modo que pessoas de todo o país começaram a enviar-lhe meias para ela e toda a família, como quem diz "estamos contigo! juntos, havemos de conseguir!" E logo ali me perguntou quanto calço, e me prometeu enviar alguns desses pares de meias, em troca dos meus frascos de compota de ruibarbo. Não voltei a pensar nisso, mas passados uns dias recebi um e-mail do secretariado da ex-presidente, informando que as meias já estavam a caminho e perguntando pela compota. Infelizmente foi na altura em que houve uma inundação terrível na minha rua, que até veio nas notícias russas (os russos adoram mostrar o que corre mal por aqui), e a minha cave ficou alagada. Lá se foram as conservas! Por sorte, ainda há gente que compra o meu livro sobre essa breve incursão no mundo dos talhões comunitários, decide convencer-me de que o problema do ruibarbo sou eu, e me envia um frasco de compota caseira. Que eu reenvio para a Finlândia. Mas o que me apetecia mesmo era ler-vos uma história do livro que acabou de sair, querem ouvir?

A sala toda queria ouvir. Por eles (por mim), até podia ser como nos cruzeiros: continuar a conversa durante duas semanas.

E ele leu: em algum momento os dirigentes russos terão percebido o que correu mal na implantação do comunismo. Foram reler os textos de Marx e repararam melhor na tese de que depois de o capitalismo alastrar a todo o mundo, uma nova era chegará, na qual o comunismo libertará o mundo do tumor capitalista. Aha!, terão dito os dirigentes: foi esse o erro. Primeiro temos de deixar que o capitalismo se espalhe realmente a todo o mundo, e só então podemos avançar. A contragosto, suspenderam a tarefa de construir o sistema comunista, e implantaram o capitalismo no país. As pessoas não gostaram, reclamaram imenso. Os pobres chefes da polícia política, obrigados a assumir o papel de oligarcas milionários, lamentam-se cada vez mais e perguntam: quando é que este horror acaba?
Putin aconselhou-os a ter um pouco mais de paciência, e informou: estamos à espera de Cuba.

A sessão terminou com um brinde. De pé, virado para a sala, o escritor ergueu o seu copo de vinho, brindou à primavera que está a chegar, brindou ao sol:

- Na URSS o sol era muito importante. Todas as canções falavam de sol. Não havia desenho nenhum sem um sol. Marx, Lenine, sol. Quando os americanos chegaram à lua, os russos começaram a preparar-se para fazer melhor: iriam ao sol. Mas iriam de noite, para não se queimarem. 

Köpenick era na Alemanha de Leste. À minha volta, as pessoas choravam a rir, porque ele lhes falava directamente às recordações da infância. Algumas por pouco não começaram a cantar uma dessas melodias russas. Depois foi toda a gente para casa, e o Matthias e eu viemos os 40 minutos da viagem (sim, Köpenick fica no Leste profundo) a relembrar e a rir.

E foi por estas e por outras que ontem tive muita pena de todos os meus amigos portugueses que não entendem alemão.


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