09 março 2017

a Nova Portugalidade tira-me o sono


Ontem caí na asneira de ler à noite um artigo de Rafael Pinto Borges, a explicar a ideia da Nova Portugalidade no "Bom Dia", o que foi uma péssima ideia, porque já não me deixou dormir.

Bem tentava esquecer, bem tentava abstrair, não pensar em nada, pensar noutras coisas, mas era mais forte que eu.

Onze da noite, e eu a rir imaginando a cara dos meus amigos brasileiros quando lhes fosse falar da sua portugalidade, do contributo da NP "para a necessária redescoberta do que nos irmana e, logo, para a superação dos traumas que nos apartaram". Eu a rir só de pensar nos traumas que temos para lhes resolver, por exemplo aquela questão em aberto de o convento de Mafra ser deles, porque foi pago com a prata que lhes roubamos. Coitada da Nova Portugalidade, se tiver de pagar esta conta vai ficar um bocadinho mal de finanças.


Onze e um quarto, os brasileiros contavam uma nova anedota de portugueses:
- Qual é o cúmulo de Manuel e Joaquim?
- Rafael!

Onze e meia, esses "povos fraternais" já estavam a roubar a piadinha do tempo da URSS:
- Lembrem-se que Portugal não é um país amigo, é um país irmão!
- Qual é a diferença?
- ...

Eu a virar-me na cama sem conseguir adormecer, lembrando-me de um episódio com um angolano bem-disposto, numa esplanada no Porto: o empregado demorou mais de meia hora para vir saber o que queriam, e depois nunca mais vinha com o que fora pedido. Ao fim de uma hora de espera, o angolano comentou: agora é que percebo porque é que nada funciona em Angola: fomos colonizados por vocês!
Coitado do Rafael: vai ter tanto trabalho a explicar a 300 milhões de almas a diferença entre colonização e portugalização!

Um quarto para as doze, pensava na anedota contada por judeus

     (Em 1948, um barco cheio de judeus chegou à costa de Israel e todos desataram a dar vivas, excepto um que começou a chorar. "Porque é que te estás a lamentar?", perguntou-lhe um amigo. "Se os ingleses já nos estão a dar uma terra que não é deles, preferia que nos tivessem dado a Suíça".)

e transcrevia-a para os países por nós aportugalizados: "se os europeus já nos estão a enriquecer com a sua cultura e fraternidade, tinha mesmo de ser com a portuguesa? preferia a sueca!", e pensava na resposta que o Rafael lhes daria, "olhem que os suecos não sabem fazer uma constelação de povos exuberante e complexa como a nossa, vão por mim, eu é que sei o que é bom para vocês."

Meia-noite, e eu a pensar nos gloriosos marinheiros portugueses a desembarcar em terras estranhas movidos pelo patriótico ardor de multiplicar a portugalidade com as mulheres locais. Diz o monstro para a monstra: vamos fazer monstrinhos? Diz o português para a indígena: vamos fazer portugalidadezinhas? Meia-noite e cinco, e eu a rir outra vez.

Meia-noite e um quarto, eu a rir-me da "nação policromada, diversa mas coesa, que se dilatou pelo globo (...) e esmagou Napoleão". Coitado do Napoleão, meteu-se com policromados, é para aprender. O Hitler ainda pensou em invadir Portugal, porque a VW tinha manifestado interesse em policromar o carocha, mas lembrou-se do Napoleão e recuou logo. Tá queto, que ninguém se mete com quase 300 milhões de almas do espaço luso sem sair esmagado.

E por falar em alma, eu a pensar que já fui duas vezes ao Brasil e ainda não descobri lá a minha alma que tanta falta me tem feito desde a desportugalização. Tenho de voltar, e procurar melhor. E tenho de ir às regiões portugalizadas de África e da Ásia, que até parece mal ter a alma extraviada em sítios aonde nunca fui.   

Meia-noite e meia, eu a descobrir a diáspora portuguesa como um vector prioritário a explorar. Eu a chegar atrasada a um encontro com alemães, e a tentar convencê-los que estava a enriquecer a cultura deles com a minha portugalidade. "Aportugalizai-vos, meus irmãos, que só vos vai fazer bem!" - dizia-lhes eu. "Amanhã, para treinar, tentem chegar todos com dois minutos de atraso. É um começo. Uma libertação da vossa pontualidade psico-rígida."

Uma da manhã, eu a imaginar um cartoon do Salazar debaixo da cama do caixão, com ar agoniado, a perguntar se o meias-tintas vai com todos já lhe tinha desamparado a loja do cemitério, eu a imaginar um cartoon de um Estaline indignado a dizer ao Rafael "vai chamar pai a outro!"

Uma e dez, o Caetano a cantar "eu sou seu bezerro, gritando papai".

Uma e meia da manhã, eu a dar-me conta que já nem precisamos de um Herman José ou de um Ricardo Araújo Pereira para criarem uma caricatura deste tipo. O homem já faz o serviço todo, e com génio: ele é o fetiche por ditadores, ele é a cena hilariante no cemitério de Santa Comba, ele é o achar que há 300 milhões de pessoas espalhadas por outros continentes à espera que os portugueses lhes vão dar sentido à vida, ele é o discurso esquivo e falso (Salazar? Não, eu gosto é do Estaline! Quer dizer, tem dias. Também gosto do Chávez. E o Salazar, convenhamos, tinha algumas coisas boas. Não era tudo, era só algumas coisas. Não muitas, só as suficientes para ir lá acocorar-me em frente ao seu túmulo. A verdade é que eu, em termos de ditadores, sou um rapaz muito policromático, desde que seja uma figura forte, uma pessoa que saiba o que é bom para o seu povo, está bem. Vou a Santa Comba porque se pode ir de camioneta, isto ao preço a que a vida está não dá para ir assim sem mais em peregrinação até à muralha do Kremlin.)

Depois adormeci, e sonhei com Luís de Camões a ler na Corte, em voz alta,

E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitânia antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade


e no trono de D. Sebastião estava sentado o Rafael Pinto Borges, e no regaço tinha um i-pad com um novo artigo para o Bom Dia, onde falava da necessidade imperiosa de partir para Alcácer Quibir para cumprir o destino da Portugalidade.



5 comentários:

Anónimo disse...

Incrível, é mesmo de tirar o sono.
E a táctica, ou a natureza, de não ter uma mensagem clara, torna tudo mais confuso e difícil de discutir claramente. Faz lembrar o Milo (deve ser fã). Mas nalgumas partes a clareza vem ao de cima, como nisto que escreveu sobre Mário Soares: "M. Soares é este Portugal e este regime. O seu legado é um Portugal novamente ínfimo, sugado de juventude, castrado na fome de grandeza e devolvido a uma prisão europeia de 92 000 km² após séculos de aventura imperial."
Há qualquer coisa de anti-científico ou racional nos discursos desta nova extrema-direita. Criticam tanto o "politicamente correcto", mas parecem bem conscientes dele, pois em vez de dizerem abertamente o que acham, comunicam tudo por insinuações. Se confrontados com elas, ah não era nada disso que eu queria dizer...estão a deturpar a mensagem..Pois. Então são contra a descolonização, é isso? Ok, podemos ter um debate aberto sobre isso. Em vez de ter tds os jornais a espalharem a nova deste "movimento da nova portugalidade" que não tem ponta por onde se lhe pegue, porque não há nada que explique claramente as ideias e objectivos deles.
Caraças eu também tenho orgulho de ser portuguesa. Não é possível aumentar a auto-estima dos portugueses sem ser com lembranças das "aventuras" dos descobrimentos?

Ana

Júlio de Matos disse...



O D. Sebastião foi para Alcácer-Quibir
De lança na mão, a investir, a investir!
Com o cavalo atulhado de livros de História
E guitarras de Fado, para cantar "Vitória!":

https://www.letras.mus.br/sergio-godinho/498141/

Helena Araújo disse...

Ana,
claro que é!
Uma vez uma amiga alemã disse-me, a rir: "vocês, portugueses, estão sempre a olhar para o passado. No séc. XIV fizeram os descobrimentos, e desde então nunca fizeram mais nada."
É pena darmos esta imagem de termos ficado parados nos feitos gloriosos de há meio milénio.

Rita R. Carreira disse...

Falava eu com um amigo no outro dia e dizia-lhe que, na minha opinião, a fascinação de alguns portugueses por déspotas -- agora andam fascinados com o Trump -- advém de, em Portugal, se confundir força com competência. Será que esse Rafael já saiu de Portugal? Mesmo não tendo saído, é capaz de ser especialista em todos os países do mundo...

Helena Araújo disse...

Eu estava capaz de organizar uma vaquinha para lhe comprar um bilhete de ida para a tal portugalidade. Ia ser giro vê-lo a testar as suas teorias na realidade.