22 fevereiro 2017

amor, prazer e dor




Comprei com meio ano de antecedência bilhetes para um concerto da Maria João Pires, e andei este tempo todo em estado de Vorfreude (mais uma palavrinha alemã para enriquecer o léxico de todos: aquele estado de alegria antecipada por alguma coisa que vai acontecer, seja um concerto especial, umas férias, ou as batatas azuis que vou plantar aqui na minha quintinha).

Entretanto o meu coro começou um projecto especialíssimo com o Rundfunkchor - o coro profissional que costuma cantar com a Filarmónica de Berlim - e o segundo ensaio com eles coincidia com o concerto da Maria João Pires. Ainda pensei fazer gazeta, mas depois do primeiro ensaio percebi que a questão não é a obrigação de estar presente, é mesmo a oportunidade extraordinária de cantar ao lado daqueles cantores profissionais, e de aprender com o maestro deles, que é um espanto, vários espantos juntos. Um dia ainda escrevo um ensaio de teologia sobre este Deus que insiste em encher-me de nozes sem critério, como estes dois imperdíveis à mesma hora.

Com muita pena, desisti do concerto da Maria João Pires. E logo a seguir um amigo avisou-me que ela o cancelou. Ia anunciar alegremente que Deus existe, mesmo e sem margem para dúvidas, quando me lembrei que sou a Calamity Jane da música clássica. Ai! E se aconteceu alguma coisa à pianista? Low profile, que as conclusões teológicas ainda me saem pela culatra: arrisco-me a que me tirem a nacionalidade e me metam na cadeia por alta traição. Espero sinceramente que o concerto só tenha sido cancelado porque ela percebeu que eu já não podia ir assistir, e portanto não valia a pena dar-se ao incómodo de vir a Berlim. Claro que foi isso.

Ontem foi o segundo ensaio com o Rundfunkchor, na sala em que eles trabalham, com piano de cauda, estantes de madeira, painéis para melhorar a acústica - um luxo. Desta vez, fiquei entre a cantora que às vezes vem ajudar o nosso maestro com ensaios dos naipes, e uma solista do Rundfunkchor. Que maldade! Parecia aquela vez que puseram o o António Zambujo a cantar com o Milton Nascimento, mas muito pior. Parecia a anedota do elefante e da formiguinha, e eu de tal maneira intimidada que nem consegui brincar com a ideia da areia que estávamos a levantar. Não se faz isto a uma simples mortal! Lado a lado, ela tão insuperavelmente acima de mim, tudo era abismo entre nós: a sua voz cheia e segura, a dicção perfeita, a concentração absoluta, as palavras separadas com primor (quantas vezes o nosso maestro nos pede para meter uma folha de papel entre as palavras, e nos pergunta quem é esse "Willich" de que falamos quando devíamos dizer "will ich"), as consoantes finais no milésimo de segundo certo, a tensão, a exactidão dos crescendos, a doçura dos pianos ("piano não é um forte frustrado", dizia o maestro deles), a respiração, a frescura inteira no fim das frases. E eu ao lado dela, a morrer de vergonha. Sadismo puro. 

No intervalo, perguntei à cantora do outro lado (a estudante de canto que às vezes nos ensaia) se queria que eu trocasse de lugar com a solista, para ela a ouvir melhor. Disse que não, tranquilo tranquilo, que estava tudo bem como estava. E depois, a meio da segunda parte do ensaio, no fim de uma peça de Brahms, acrescentou: "não preciso nada da solista ao meu lado, já te tenho a ti, cantas como uma profissional". Aaaah, comecei logo a cantar melhor.
Sou uma rapariga muito sugestionável.

("Amor, prazer e dor" é uma excerto da canção de Brahms. Que é a minha favorita das suas 18 "Valsas de Amor".)



4 comentários:

Paulo Topa disse...

Nem sempre comento (já o disse anteriormente), mas adoro estes seus comentários, eu que não percebo nada de música, especialmente porque se percebe que gosta mesmo do que faz. Essa é a parte mais fixe.
Espero que o espetáculo seja espetacular!

Unknown disse...

Que belo texto, estive lá e vi as duas!

Helena Araújo disse...

"As duas" são a solista e eu? Espero bem que, mesmo vendo as duas, só tenha ouvido a solista! ;)

Helena Araújo disse...

Paulo,
O espectáculo não vai ser espectacular. Mas o trabalho para o preparar, esse é. Estou a gostar imenso. E a aprender muito.