27 janeiro 2017

no dia em que se comemora a libertação de Auschwitz

Recapitulemos: uma das estratégias dos nazis para conquistar votos passou pela identificação de um grupo como inimigo da pátria. Uma vez instalados no poder, foram tirando cada vez mais direitos a esse grupo: proibição de exercer determinados empregos, nomeadamente na função pública ou nas áreas da saúde e da cultura; expropriações das empresas e dos bens pessoais; proibição de casar com os "arianos" - entre muitos outros. Um dos lemas mais importantes era "proteger os nossos interesses, não lhes dar dinheiro a ganhar". Não contente com uma retórica que fragilizava os judeus e os expunha a explosões de violência, o regime usava as suas forças policiais para dar o exemplo de ataques, destruição e perseguição. Depois de uma primeira fase, em que expulsava os judeus do país, o regime decidiu-se pela solução final: o extermínio.

No dia em que se comemora a libertação de Auschwitz, duas inquietações:

- O Holocausto não começou nas câmaras de gás. Começou muito antes, quando se identificou um grupo como o inimigo, e se começaram a tirar às pessoas cada vez mais direitos de cidadania. A partir de que momento é que se torna evidente que estamos a assistir à repetição de algo que pensáramos para sempre irrepetível?

- Vemos sinais muito preocupantes de estar a acontecer algo semelhante nos EUA contra os mexicanos e contra os muçulmanos, mas hesitamos em usar determinadas palavras para acusar o que vemos. Será que, no que diz respeito a violações da dignidade humana, se pode afinal fazer tudo, excepto câmaras de gás?

Um desabafo: começo a compreender melhor como é que 1933 foi possível, e como é que as pessoas de bem se sentiam ao ver tudo aquilo acontecer. Da próxima vez que alguém quiser dizer "os alemães, esses nazis", olhe-se bem ao espelho e pergunte-se o que é que fez para impedir no nosso mundo de hoje a repetição dos passos dados pela Alemanha nos anos 30. E não é só nos EUA. O muro do México já existe há muito tempo numa fronteira europeia - em Melilla.

Um desafio: perante o que está a acontecer nos EUA, só há uma resposta - aprofundarmos os valores que dizemos nossos, e lutar realmente por eles. Desde as capitais europeias até Melilla, Lampedusa, Kos e a fronteira entre a Sérvia e a Hungria. O mínimo que podemos fazer é uma manifestação de muitos milhões, em toda a Europa, contra os egoísmos nacionais e a favor da defesa dos valores sobre os quais queremos construir um mundo viável - esse mundo que queremos deixar aos nossos filhos.


6 comentários:

Anabela Jardim disse...

a questão do muro para separar o México dos EUA é mais complexa. Não se trata de separar os dois países, mas sim de fechar as fronteiras para os demais países da América Latina.Há apenas um grande inimigo da humanidade, na minha opinião, o egoísmo. Ele gera todos os males e sede de lucro a preço do sangue alheio.

Helena Araújo disse...

O muro de Melilla fecha a fronteira da Europa aos países africanos. A única diferença que vejo em relação ao do México é meramente geográfica.
O egoímo é um grande inimigo da humanidade, sim. O medo é outro.

Filipa disse...

O medo não é um inimigo. Seria inconsciente não temer a ameaça islâmica, por exemplo. O pior é quando o medo se torna invasivo e quando é explorado por forças políticas. A Marine Le Pen, o Trump, o Duterte e o Modhi são exemplos disso.

Helena Araújo disse...

"Ameaça islâmica"? O que é isso? Tem consciência que está a confundir uma religião inteira com um grupo absolutamente minoritário?

Que tal se noutras áreas do mundo se falasse descaradamente da "ameaça cristã" como um dos maiores riscos do planeta? Ou da "ameaça branca"?

Baltazar Garção disse...



Há até uma famosa citação de um escritor britânico orientalista sobre a ameaça branca e cristã...

Hei-de tentar lembrar-me.

Baltazar Garção disse...


Não a encontrando (estava no frontispício de um blogue, que agora já não consigo recordar), vou tentar citar de memória, porque me parece muito oportuna:

«A proclamada supremacia civilizacional europeia sobre o resto do Mundo deve-se historicamente não à suposta superioridade da sua Raça, Cultura, ou Religião, mas somente à sua maior eficácia no emprego da violência organizada».

(Rudyard Kipling?)