27 janeiro 2017

despachar os nazis com palavreado

(O Speedy Gonzalez dedica esta tradução aos meus amigos das áreas da Sociologia, da História, da Filosofia e de todas essas - como agora é corrente dizer-se - "tretas que só servem para queimar o dinheiro do contribuinte e vão-trabalhar-ó!-seus-inúteis!". Os links no texto traduzido são todos para textos em alemão.)
(Texto do Spiegel Online)



Usar as ciências humanas contra a extrema-direita


Despachar os nazis com palavreado


O problema da extrema-direita é que, de facto, eles não são burros. São eloquentes, e nunca dizem com clareza o que pensam. Por isso mesmo é tão importante entender correctamente o que dizem. 






Há cerca de onze anos fiz na Universidade um exame de Lógica onde, entre outras questões, se colocava o seguinte problema: "Nenhum gato tem dois rabos. Um gato tem um rabo mais do que nenhum gato. Portanto, um gato tem três rabos." A minha tarefa era explicar porque é que a conclusão não funcionava. Nesse mesmo dia era o funeral da minha professora de Filosofia, por causa de quem eu tinha começado aquele curso. E ali estava eu com um gato de três rabos, sem saber se tudo aquilo não passava de um enorme disparate.

Hoje em dia, ao ler as notícias, tenho a sensação de há muitas histórias com gatos de três rabos e poucas pessoas que explicam porque é que não é assim. O mais tardar desde que Trump ganhou as eleições, mas de facto desde há mais tempo, desde que a extrema-direita começou a ganhar velocidade, chegou a hora das chamadas "áreas de formação em palavreado". São elas as ciências humanas, sobre as quais se diz que não servem para nada a não ser para palavrear. Têm fama de estarem de costas voltadas para o mundo, e de serem elitistas. Actualmente, estas expressões costumam ser usadas como acusação, por parte da direita. Diz-se, por exemplo, que a esquerda não conhece os verdadeiros problemas das pessoas, as necessidades dos que estão lá em baixo, tudo isso.

Isto não acontece por acaso. Deixando de lado a questão de que "estar de costas voltadas para o mundo" não tem de ser necessariamente um insulto, porque os mundos em que certas pessoas vivem não são lugares para nos sentirmos em casa, estas acusações assentam numa reacção de defesa semelhante. É o medo de não conseguir acompanhar um mundo cheio de diversidade e em mudança, e o medo de que explicações simples já não bastem. As explicações simples raramente bastam. Tornar-se adulto implica dar-se conta de que o mundo é complicado.

Um curso de palavreado permite reconhecer o palavreado nos outros

O problema com a extrema-direita não costuma ser resultado de erros de lógica, ou de burrice ou de não estudarem ciências humanas. O que não falta nas chefias da AfD são pessoas com curso e doutoramento. Björn Höcke era professor de História antes de se tornar o flanco da direita de um partido da extrema-direita. Ele sabe do que fala, e sabe exactamente como posicionar o seu discurso ao milímetro dentro dos limites da liberdade de expressão, de modo a provocar um escândalo sem se chegar a um processo.

O que também se aprende nos chamados "cursos de palavreado" é ser capaz de dar resposta até a nazis inteligentes. Quem estuda um curso de palavreado aprende a reconhecer o palavreado dos outros. Porque a nova extrema-direita não diz "nós somos profundamente misantrópicos e odiamos as minorias, queremos recolher-nos a um mundo do tamanho do útero do qual viemos, ó mãeeeeee." Pelo menos não dizem isso com estas palavras. Dizem-no de forma muito mais eloquente e mascarada, de modo a que as pessoas não se envergonhem de os seguir.

O meu desejo é que, em todos os lugares onde a extrema-direita ganha força, pessoas que tenham feito um dos chamados cursos de palavreado sejam capazes de se lembrar do que andaram a aprender na Universidade. Algumas das frases da extrema-direita perdem a sua força em confronto com o simples bom senso, mas este pode ser treinado e não é imune a armadilhas. Nós aprendemos a desmontar argumentos e metáforas, sabemos da importância de ter conceitos em vez de eco e fumo, conhecemos exemplos históricos sobre aonde certos desenvolvimentos podem levar, conhecemos outros modelos de sociedade também possíveis, e conhecemos muito bem algumas utopias. Devemos usar tudo isto, e já.

De momento fala-se muito em verdade. "Fake news", "factos alternativos" e o seu contrário: a verdade. Como se fosse claro. Nada disso é claro, porque há mais teorias sobre a verdade que dedos numa mão. Talvez uma frase seja verdadeira se descrever o mundo como ele é, mas talvez isso não seja possível. Talvez uma frase seja verdadeira se um grande número de pessoas concorda com ela, mas temos exemplos horríveis que refutam essa teoria. Talvez uma frase seja verdadeira se for recebida por meio de uma revelação divina, mas isso raramente acontece. Talvez uma frase seja verdadeira se não for contradita por muitas outras - mas é impossível eliminar da vida todas as contradições. O curioso é que há muitas teorias sobre a verdade, e em algumas delas é possível falar da "minha verdade" e da "tua verdade", mas isso não torna melhor o bullshit relativo aos "factos alternativos". 

Trump quer arrasar as ciências humanas - porque elas o ameaçam

Há limites. E temos de os pôr em evidência antes que se torne aceitável ignorá-los. É certo que não foi possível parar a Alemanha dos nazis com argumentos. Mas talvez tenhamos aprendido alguma coisa que possamos agora usar, antes que se chegue tão longe de novo.

De momento discute-se novamente se se pode bater nos nazis, ou até se se deve. Richard Spencer é o líder do chamado "Movimento Alt-Right", um grupo de neonazis que não querem que lhes chamem neonazis. Durante os protestos contra o Trump, Spencer foi atacado quando dava uma entrevista. O filme do ataque multiplicou-se na internet com diversas músicas de fundo, e tornou-se famoso. O que não melhora as coisas. Satisfaz alguns baixos instintos das pessoas, e pode contribuir para a ainda maior radicalização da extrema-direita. Parabéns! Antes de começarmos a atacar os nazis, devíamos usar todas as outras possibilidades que temos para os tornar inofensivos.

O novo presidente dos EUA, Trump, não se pronunciou em público sobre o nazi esmurrado. Mas pouco depois da sua tomada de posse soube-se que Trump tenciona eliminar os apoios estatais às Humanidades e à Arte. Uma jogada de xadrez que conhecemos de regimes autoritários. Trump não as ataca por as achar aborrecidas. Mas porque se sente ameaçado por elas, muito mais que por um murro na cara.


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