21 julho 2016

notícias de um ocidente humanista e cristão

Do ataque no comboio de Würzburg há duas cenas que não me saem da cabeça. A primeira, é o atacante ter reconhecido num dos passageiros uma mulher que trabalha no centro onde ele viveu quase um ano, e ter ido para outro compartimento. A segunda é uma voluntária desse centro a dizer na televisão, em horário nobre, que tinha muito boas recordações daquele rapaz, do tempo em que tinha trabalhado com ele, e que, não querendo de modo algum criticar a polícia, confessava que sentia tristeza pela sua morte.

A primeira cena vale o que vale, mas há aqui um homem tresloucado que, no momento em que está prestes a matar por ódio, consegue reconhecer quem lhe fez bem e poupar a vida dessa pessoa: o amor, ou a gratidão, podem ser maiores que a loucura e o ódio.
Este compartimento que foi poupado àquela violência louca porque ia nele uma mulher justa, digamos assim, lembra um pouco aquela discussão entre Deus e Abraão, quando Deus quer destruir Sodoma e Gomorra, e Abraão regateia com ele,  "se lá houver cinquenta justos, poupas a cidade? e se forem quarenta e cinco? e se forem trinta? e se forem dez, também a poupas?"
Naquele compartimento, bastou um.

A segunda cena é um daqueles momentos especiais da História: em vez de diabolizar o atacante, esta voluntária continua a ver nele uma pessoa, e a televisão escolhe passar em horário nobre palavras simples e plenas de humanismo, com grande poder pacificador. Imagino com que gratidão os muçulmanos e os refugiados que vivem neste país terão ouvido este testemunho. Em vez de fazer um discurso de medo que aumenta a desconfiança em relação a todos os muçulmanos, o que vimos nos dias seguintes ao atentado foi um esforço sério para compreender o que levou a este ataque e encontrar meios de evitar que outras pessoas em condições semelhantes se deixem levar pela loucura e pelo desespero. Os políticos não estão a iniciar uma linguagem bélica para combater o terrorismo - fala-se em melhorar o apoio a esses menores não acompanhados e informa-se sobre a sua extrema fragilidade, os traumas e a solidão.

A localidade onde o atacante viveu durante quase um ano reagiu com teimosia: agora vão ajudar ainda mais os refugiados, para que eles se possam realmente integrar, curar as feridas profundas que trazem da guerra e da travessia da Europa, e recomeçar a vida. Afinal de contas, dizem, nunca houve qualquer incidente com nenhum dos refugiados que lá vive (200, numa localidade de 11.000 habitantes), e não há motivo para desistir de ajudar quem precisa tanto, só porque aconteceu esta tragédia com um deles.

Em momentos destes vê-se que a Alemanha vive realmente a sua herança humanista e cristã.


3 comentários:

jj.amarante disse...

Obrigado Helena, por mais um post tão bom.

Jaime Santos disse...

Não se pode apagar a História, mas podemos aprender com ela. E não há dúvida de que os alemães aprenderam mesmo. Quanto ao pormenor da vila onde o atacante viveu ter reagido com a teimosia que reagiu, faz lembrar a atitude da Noruega depois da carnificina perpetrada por Breivik: ao terrorismo e ao ódio responde-se fazendo exatamente o contrário daquilo que os terroristas esperam que façamos...

Helena disse...

Obrigada Helena,
Uma das leituras de hoje na missa era precisamente o regateio de Abraão. Já tinha (tres)lido o seu post no feedly mas não tinha tido oportunidade de o comentar. Ao deparar-me hoje com esta passagem na missa, arrepiei-me e fiquei o tempo todo a pensar no seu post.
Tem toda a razão, basta tão pouco para fazermos a diferença!