25 julho 2016

calma, é apenas um pouco tarde



Ontem, na viagem de regresso a Berlim, ao entrar na Baviera sintonizámos o rádio numa estação local, mesmo a tempo de ouvir o locutor dizer: "Continuamos todos em estado de choque devido aos acontecimentos dos últimos dias. O Estado está muito atento e a fazer todos os possíveis para evitar que tragédias como estas se repitam. E cada um de nós terá de fazer também tudo o que está ao seu alcance para as impedir. Temos de ser muito mais atentos uns aos outros, e aprender a ter gestos de simpatia e humanismo para com todos." Depois continuou normalmente o programa musical da tarde.

Um pouco mais tarde noticiaram que numa cidade do sul da Alemanha um homem matou uma mulher com um machete no meio da rua, e feriu mais uns quantos. Pela descrição que li hoje no Spiegel, era um refugiado sírio a quem não deram autorização para ficar na Alemanha, mas foi ficando porque não se pode repatriar pessoas para países em guerra. A vítima era sua colega de trabalho. Depois de matar essa sua conhecida, partiu o pára-brisas de um carro que passava, e entrou em dois estabelecimentos de restauração - num, esfaqueou um homem na cara; no outro, espetou várias vezes a sua faca numa mesa de madeira. Durante a sua fuga, duas mulheres feriram-se. Um condutor que testemunhou o ocorrido atropelou-o propositadamente para o imobilizar. O atacante está agora nos cuidados intensivos do hospital, sob vigilância policial.

Esta manhã, leio a notícia de um atentado suicida à entrada de um festival. Um refugiado sírio, que trazia na sua mochila uma bomba, juntamente com pregos e fragmentos de metal. Li duas notícias algo contraditórias: uma diz que não o deixaram entrar porque não tinha bilhete; outra afirma que deu meia volta quando descobriu que estavam a revistar todos os sacos. Em todo o caso, a única vítima mortal foi ele mesmo. Felizmente, nenhuma das pessoas feridas na explosão corre perigo de vida.

Ambos os sírios eram conhecidos da polícia, por pequena criminalidade.

Penso com tristeza nas vítimas, e nas suas famílias. Em poucos dias, tantas mortes horríveis, e tantos feridos e familiares cuja vida mudou radicalmente num único momento. Tantas pessoas em sofrimento e profundamente traumatizadas - talvez para sempre.

Parto do princípio que estes ataques se vão repetir, e não tenho dúvidas de que há algures alguém a preparar um atentado de dimensões bem diferentes. A próxima vítima posso ser eu, ou alguém que me é especialmente querido.

Muito mais que a minha vida ou a vida dos meus próximos (afinal de contas, a probabilidade de ter um acidente rodoviário é bem mais alta que a de ser vítima de um ataque destes), temo que a sucessão de cenas de violência e o medo crescente nos possam fazer perder a perspectiva e provoquem em nós reacções primárias e nada sábias. 

Há dias, a newsletter do Spiegel falava da nossa falta de memória. Já ninguém se lembra que há pouquíssimas décadas a Alemanha tinha sérios motivos para temer uma guerra nuclear no seu território, e estava a ser atacada pelos terroristas da RAF / Baader-Meinhof. É há muito mais que isso. Focando o olhar apenas na cidade de Berlim, é isto que vejo: a "ilha" ocidental cercada por um corredor da morte, o sofrimento das famílias divididas à força. A Guerra Fria que a qualquer momento podia rebentar a quente sobre uma população indefesa. A cidade destruída, a chegada dos russos, as violações das mulheres, a falta de medicamentos para tratar a sífilis, a fome. O totalitarismo nazi, a destruição premeditada e impiedosa da diversidade cultural e social. A revolução de Novembro e as explosões de violência nas ruas, o risco de uma guerra civil. Antes disso, não sei. Mas o século XX já basta para perceber que hoje, em termos de violência e horror, estamos e continuaremos a estar a uma enorme distância do que aconteceu às gerações alemãs que nos antecederam. Em Berlim, essas pessoas souberam evitar a guerra civil no princípio da República, curar os males e reconstruir a cidade após a loucura nazi, viver alegremente apesar da ameaça nuclear, recuperar a diversidade, derrubar o muro. Alargando o horizonte, olhemos para a Europa: os países souberam ultrapassar feridas profundas e ressentimentos, e construir um espaço comum que durante setenta anos garantiu a paz entre países inimigos. 

Lembro o Manuel António Pina:
"Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde"

Não deixemos que a nossa inteligência se turve à vista do sangue que tem corrido. Não somos peões, somos sujeitos da nossa História. Agora é a nossa vez de encontrar soluções para os problemas actuais, soluções que nos permitam construir um futuro melhor. De momento, está a correr mal. Parecemos galinhas tontas à frente de um carro no meio da rua. Votamos deliberadamente em partidos perigosos para a democracia e para o futuro comum, só para dar uma ensinadela ao pessoal que está no poder. Fazemos o daesh muito maior do que é, e emitimos opiniões cheias de ódio e incompreensão, que atingem uma grande percentagem da população mundial. Cegos de medo, dizemos enormidades, fazemos acusações absurdas, exigimos medidas irrealistas e incendiárias. E alguns políticos, os piores de todos, os realmente perigosos, aproveitam a situação com oportunismo.

Agora é a nossa vez, e - inacreditavelmente! - apesar de sermos a geração com melhor acesso ao ensino, à informação, aos processos democráticos e às ferramentas de comunicação, estamos a fazer muito pior figura que os nossos pais e avós, que foram confrontados com problemas bem mais graves que os nossos e não tinham os nossos meios.



Mencionando apenas o problema do terrorismo islâmico: melhor seria que, daqui em frente, após cada atentado nos deixássemos de "je suis #localdoatentadomaisrecente" e usássemos um "je suis intelligent". Para não esquecer que a inteligência corre sempre o risco de ser a primeira vítima de qualquer atentado terrorista. 

O que se passou durante a operação policial em Munique foi sintomático: ainda a polícia não sabia o que se estava a passar, e os meios de comunicação social portugueses já estavam cheios de especialistas a falar do terrorismo islâmico. O daesh deve esfregar as mãos de contente: nem precisam de fazer nada para nos encher de terror!
(O gato do número 10 de Downing Street que se acautele, porque se calha de um dia destes atravessar a rua distraído e ser atropelado, e se calha de o condutor ser paquistanês, o mundo vai tremer por esta nova fase, ainda mais cruel, do terror islâmico, que nem os animais poupa...)

Já se afirma abertamente e sem qualquer espécie de análise crítica que o Islão é uma religião bélica e perigosíssima, e que a Europa tem o direito de se proteger e por isso deve fechar as portas aos muçulmanos. Muito se poderia responder a isto. Prefiro passar o link para um artigo excelente, que um amigo me fez chegar hoje. Leiam, leiam - informa imenso e dá resposta a muitas questões. O problema não é o Islão, é o aproveitamento oportunista de uma ideia propositadamente desfigurada dessa religião para justificar comportamentos que nasceram de uma ânsia prévia de radicalização.  



Do mesmo modo, escolher um discurso islamofóbico incendiário é deixar-se levar pela sede de radicalismo, e é a solução obviamente mais fácil - quando se é demasiado preguiçoso para ler... 


3 comentários:

Jaime Santos disse...

Mais uma vez, um muito bom texto, Helena, e obrigado pelo link. As suas palavras serenas fazem-nos lembrar que não temos nada a ganhar em perder a cabeça e o sentido de humanidade para com os outros e muito a perder...

D.S. disse...

Li há uns tempos um artigo - e com muita pena minha não guardei o link dessa peça de investigação - onde era referido que vivíamos na época da História com a menor taxa de homicídios de sempre. É muito fácil deixarmo-nos levar pelo mediatismo destes ataques, terroristas ou não, que parecem agora acontecer a cada semana. Mas é fundamental meter as coisas em perspetiva: como muito bem disse a Helena, é muito mais provável morrer-se num acidente de viação do que num ataque destes. A propósito desse refugiado que matou a mulher com a machete, e porque na altura ouvi referido que se suspeitava tratar-se de um crime passional, lembrei-me logo das dezenas de mulheres que são mortas todos os anos às mãos de companheiros/ex-companheiros e das quais os media raramente falam. Mas desta vez, as circunstâncias do agressor já justificaram referência, para empolgar os números de supostos ataques terroristas.

Com isto não pretendo menosprezar o que se passou e realmente é preciso tomar medidas para tentar minimizar ao máximo este tipo de ataques; mas essas medidas não podem ser excecionais nem podem ir contra os valores europeus. Mais uma vez, metendo as coisas em perspetiva como a Helena fez ao enumerar os desafios que cada geração no séc. XX se deparou, não estamos a caminhar para o fim do mundo nem para a catástrofe, temos apenas que aprender a lidar com o problema que nos calhou na História a nós.

antuérpia disse...

Helena, acabei de ler que a Chaceler Merkel tinha decidido não mudar de política quanto aos refugiados apesar dos ataques. Fez-me respeitá-la muito.Corri para ver o que andavas a escrever por aqui e descobri isto. Não resisto a dizer-te que gostei muito, tal como do link. Bem-hajas!