30 maio 2016

da missa a outra metade

Este post já tem uma semana de atraso, mas eu ainda não consegui inventar maneira de viver a vida e contá-la ao mesmo tempo, desculpem. 






Caso alguém tenha interesse em saber mais sobre o projecto da Rundfunkchor Berlin com inúmeros coros de amadores, à custa do pobre do Schubert que não tem culpa nenhuma e nesse dia deve ter dado tantas voltas no túmulo que quase ia morrendo de novo, aqui vai:

Às dez da manhã estávamos todos a postos, todos os 1300 cantores deste projecto do Rundfunkchor Berlin, e dois pianistas. Era a primeira vez que os vários coros se encontravam juntos e com o maestro Simon Halsey. O concerto público - a missa em mi bemol maior, de Schubert - teria lugar às quatro da tarde.

Começámos pelos exercícios de distensão e de aquecimento de voz:



Após uns minutos, arrancámos com o Kyrie. Cantámos bonitinho, sem sermos interrompidos, e até nem parecia mal. Foi o que me pareceu, mas o maestro tinha outra opinião. Fez-nos repetir, uma e outra vez, em trabalho intenso e concentrado para afinar a interpretação e nos levar bem mais longe. Esse trabalho já é, em sim, a essência do prazer de cantar. Mas o Simon Halsey, com o seu humor britânico, o extraordinário dom de entertainer e o inteiro domínio da peça e dos participantes, leva esse prazer para uma dimensão a todos os títulos superlativa.

Das dez ao meio-dia estiveram apenas os coros amadores. A seguir ao almoço percorremos de novo toda a missa, mas já com a orquestra, o Rundfunkchor e os solistas. Finalmente, fizemos o ensaio geral. Mais uma pequena pausa, e seguiu-se o concerto.




Vou tentar relatar os comentários e as informações do Simon Halsey à medida que íamos conquistando a Missa página a página. No texto que se segue, as frases entre aspas são dele. As fotografias são do fotógrafo Kai Bienert, e trouxe-as da página de facebook do coro. Por favor espreitem lá, e deixem um like, para eu poder dizer que o roubo era por uma boa causa) (eles pediram-nos para pôr likes, queriam chegar aos 5000 nesse dia. Prometeram que quem fizesse o nº 5.000 tinha direito a um meet and greet com o Simon Halsey. Ele fez uma careta e comentou: "e o segundo prémio é dois meet and greet comigo").

À falta de um filme deste concerto, repito a gravação com a Orchestre Philharmonique de Radio France e o Daniel Harding. Das versões que ouvi até agora, é a que me parece mais próxima da interpretação que lhe demos neste concerto de 22.05.2016.






00:00 Kyrie

O Kyrie é um problema, porque começa com uma consoante dura. Se não estamos atentos ao maestro e uns aos outros, em vez de começar com Kyrie, parecemos gagos: Ky-Ky-Ky-Kyrie. Pergunto-me se não será daí que vem a palavra "cacofonia". Numa das repetições, o maestro zangou-se e disse aos tenores, que por azar tinham errado naquele momento: "nesta peça, o Kyrie às vezes vem depois daquilo que vocês querem. Se preferirem ser vocês a dirigir, trocamos já de lugar, e eu canto."
Mas eles não preferiam, o que foi uma sorte - sabia eu lá a qual dos 200 tenores devia obedecer!



06:21 Gloria
"Não, não é gloRRIAAA, é GLOria", notava o maestro. E pedia-nos para cantar como quem proclama, e para fazer o arco a crescer para Deo: Gloria in excelsis Deo! Pediu aos naipes masculinos que cantassem só eles, e as sopranos e contraltos aplaudiram a performance. "As mulheres gostaram", disse o Simon Halsey, e nós rimos. "Eu não! A primeira frase foi fantástica. Mas a segunda falhou."
Na última repetição antes do ensaio geral, pediu ao seu Rundfunkchor que cantasse sozinho. Ficámos consternados com a diferença. O maestro passeava pelo palco com o polegar e o indicador à volta da testa, e perguntava-se em tom meditativo "porque será que soa melhor? sim, porquê? talvez por estar mais focado, e ter mais energia, e milhões de outras coisas". Agora nós: tentando cantar de modo focado e com energia, E acertar no GLOria, e crescer para o excelsis Deo. E milhões de outras coisas.

 

06:50 - "Et in terra pax, paz na terra, ouçam, isto agora é connosco! Proclamemos: laudamus te! Mais entusiasmo: benedicimus te! E agora, o mistério: adoramus te..."



08:17 - "Gratias agimus tibi - elegante, em vez de elefante!"
e: "O som tem de vos sair dos olhos e não da barriga" (só por esta frase, já me valeu a pena todo o trabalho).



10:49 - "Qui tolis pecata mundi, que tira o pecado do mundo. Schubert tinha muitos pesos na consciência, "pecado" era uma palavra terrível para ele. Vejam o medo que ele tem aqui! Ouçam o medo na orquestra."
Esta parte - Domine Deus, Agnus Dei - começa com as vozes masculinas. O maestro interrompeu-os ao fim de alguns compassos, e perguntou "porque é que cantamos num coro, meus senhores?" Respondeu ele mesmo: "Porque está cheio de mulheres. Vamos lá cantar isso de modo a deixá-las muito impressionadas!" Os homens recomeçaram, e ao chegar ao fim da frase o maestro soltou um gritinho de admiração, juntou as mãos e fez-lhes olhinhos descaindo um lado da anca.
(Era preciso que alguém filmasse um destes ensaios.)

11:36 - Em menos de um segundo passávamos do riso para a seriedade. Na parte "cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende misericórdia de nós" tentámos pôr naquele miserere toda a espantosa beleza que o espírito atormentado do Schubert pôde produzir. Não se bate em quem está no chão, e Schubert está no chão, da sua mais baixa condição de humano e pecador pede misericórdia a um Domine Dei forte e implacável.


20:23 Credo

"Quando está a escrever esta missa, Schubert já está muito doente. Tem sífilis. Está cheio de medo do futuro e daquele Deus": Creio em um só Deus, que fez o céu e a terra, e todas as coisas, visíveis e invisíveis..."

22:50 - ...e em Jesus Cristo, que para nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus.
A música muda completamente. "Estamos em Viena, Jesus faz-se carne como nós, faz-se homem em Viena, isto é uma valsa, dancemos." - o maestro convida uma das solistas para valsar com ele ao som da orquestra. Depois mostra-nos o movimento dos contrabaixos no início da peça, "reparem que beleza, reparem na leveza deles; os contrabaixos só têm o seu solo uma vez na vida, e é hoje!"

25.30 - "Oh, no! Grande choque, grande comoção: foi crucificado! Cristo morre hoje por nós, está a morrer aqui em Berlim. O ritmo é o de um coração a bater, horrorizado por tudo o que acontece no mundo."

26:45 - "Voltamos a Viena, voltamos à valsa" - nesta parte, movemo-nos entre o horror da cruz e a beleza de um Deus feito homem. Schubert entre o terror e a esperança, oito ou oitenta.

29:34 - E de novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos. "Para julgar os vivos e os mortos! (30:05 ) Schubert tem 35 anos, tem sífilis, sabe que vai morrer, Tem um medo enorme. Um medo enorme."



31:10 - Professo um só baptismo para a remissão dos pecados, O maestro ajoelha-se e implora em tom dramático: "remissãããããoooooo dos pecaaaaaadooooos".


35:42 Sanctus

Antes de começar o Sanctus, um pouco de conversa: "No Digital Concert Hall foi publicado recentemente um filme com entrevistas a maestros. Numa delas, Zubin Mehta diz que o trabalho do maestro é analisar. Reparem no início do Sanctus: começa em si bemol menor, e segue para algo completamente inesperado, assusta-nos - si menor." (um dos pianistas toca os dois acordes, e ele esconde-se atrás do outro, com esgares de terror. "O terceiro acorde soa ainda mais desconfortável: sol menor." Corre, com ar de aflição, para se aninhar escondido atrás do pianista, enquanto nós digerimos o efeito daquela sequência de acordes. Depois levanta-se, vem à boca do palco, e remata: "É isto o que eu faço de segunda a quinta-feira."

36:27 - No fugato "pleni sunt coeli et terra" o maestro pede-nos "um coro de anjos".


39:10 Benedictus


45:13 Agnus Dei

"This is the stuff of horror movies", avisa-nos.

 46:06 - Miserere, miserere nobis: "O tempo é instável, porque o futuro é incerto". E logo a seguir: "conhecem a história de Lázaro, que estava morto e voltou à vida, libertando-se das faixas que o envolviam?" - ele próprio mima Lázaro, primeiro preso e retesado, a pouco e pouco ganhando liberdade e leveza de gestos - "é assim que quero que cantem este miserere nobis."
(se em vez de dizer Lázaro tivesse dito Houdini toda a gente percebia logo)

51:43 - Dona nobis pacem: "Ficamos  com a sensação que a missa vai acabar aqui, no fim deste diálogo entre os solistas e o coro em eco, e acabava muito bem. Mas não é o caso! Logo a seguir ao último pacem entram os barítonos em tom ameaçador, como num filme do Harry Potter."

53:49 - "Pela segunda vez, ficamos com a sensação que a peça devia acabar aqui. Mas ainda não acaba, ainda precisa de um final terrível! Normalmente sai-se de um concerto com sentimentos de leveza. Desta vez não será assim. Deste concerto sai-se doente."








Não saí do concerto doente, nada disso. Mas saí muito mal-habituada. Foi extraordinário sentir a minha voz fundir-se com centenas de contraltos, jogando com ou contra os outros naipes poderosíssimos. E, se pudesse, daqui para a frente só cantava com orquestra.
Maravilha.

Depois do jogo é antes do jogo: vou preencher a ficha para me inscrever no próximo projecto.


2 comentários:

Lucy disse...

Fantástico, tudo...

Helena Araújo disse...

:)
Foi mesmo especial!