25 abril 2016

o Colégio Militar e a sua cultura de inclusão

Se eu soubesse quem manda no Colégio Militar, escrevia a essa pessoa a sugerir que proibisse toda a gente ligada à instituição de falar sobre ela. Ultimamente, de cada vez que alguém abre a boca, parece que está a fazer crash testing com a imagem da escola. Amolgadelas em cima de amolgadelas.
(Bem sei que isto de impor mordaças vai um bocadinho contra a Constituição, mas uma das amolgadelas recentes foi justamente sugerirem a possibilidade de dar um jeito quando a Constituição não dá jeito, e portanto...)

Amolgadelas:

- Aquela mãe entrevistada no Observador que teme que, "numa escola em que o mais novo deve respeito ao mais velho", o mais velho possa violar o mais novo. Se isto não é uma facada nas costas do Colégio Militar! A frase dá a ideia de se tratar de uma instituição na qual os adultos investem os alunos mais velhos de poderes arbitrários sem - aparentemente - haver garantia da aptidão para o seu exercício.
Concretamente, no que diz respeito ao medo da violação: se, no nosso tempo, qualquer miúdo tem consciência da sua dignidade e da inviolabilidade do seu corpo, que espécie de "respeito pelos mais velhos" vigora no Colégio Militar, que profunda alienação dos direitos de personalidade acontece ali, que leva uma mãe a temer que o seu filho não faria imediatamente queixa de um mais velho ao menor sinal de este querer abusar dele? Mais: se essa imposição de um respeito total realmente existe e é desejada pela instituição, como é que se garante que não há abuso? É que é muito fácil identificar um comportamento sexual invasivo e predador, mas o mesmo não se pode dizer da prepotência e do abuso sádico do poder. Como é que o Colégio Militar protege os seus alunos mais frágeis de algum eventual desequilíbrio psicológico e de carácter de um aluno mais velho?
Mais valia essa mãe não dizer nada, para evitar dar tão má imagem da escola.

- No mesmo artigo do Observador, exprimia-se uma outra preocupação, a de "ter um filho violado por causa da Constituição", que dá a quem está de fora a ideia de que dentro do Colégio Militar  (1) se entende que a lei fundamental do Estado português pode ser suspensa quando o medo fala mais alto e (2) apesar de ser uma escola que se orgulha de treinar os alunos para a obediência e a disciplina, não consegue afinal impedir que nas camaratas os alunos façam o que muito bem lhes apetece (à revelia das regras claramente expressas, tais como a proibição de namoros e, por maioria de razão, de contactos sexuais). Bem sei que a liberdade de expressão, e isto e aquilo, mas peçam a essa pessoa que se cale, porque a imagem que transmite é a de uma escola sem rei nem roque.

- O subdirector da escola contou, numa entrevista ao Observador, que os casos de roubo e de drogas são tratados pela direcção (transferência imediata para outra escola), enquanto os casos de homossexualidade acabam por ser resolvidos, aparentemente, com uma vaga de bullying tolerada que envolve todos os alunos: “Passados 30 segundos, toda a gente sabia. O colégio parece um Big Brother. Tudo se sabe. A informação passa. Agora repare o que é um aluno numa situação crítica e complicada, e que deveria ter alguma salvaguarda de identidade… Passado uma hora, 600 sabem e 600 estão a comentar. É complicado“. O aluno acabou por sair da escola.

Uma pessoa bem tenta, mas é difícil não imaginar um cenário no qual, sendo impossível expulsar o aluno por homossexualidade, se permite que os outros alunos lhe dificultem de tal maneira a vida que ele acaba por sair. E nem sei o que me assusta mais: se a imagem de um grupo de alunos tacitamente autorizado a comportar-se como mob contra um colega que se suspeita ser homossexual, se a direcção de uma escola que parece demitir-se de resolver um problema com a sabedoria e a autoridade de pessoas adultas. Ora, eu não percebo nada de escolas militares, mas percebo bastante de escolas civis, onde já vi directores e professores a agir em defesa de um aluno e dos princípios indiscutíveis da nação, interpondo-se entre o aluno e o mob e cortando cerce o fenómeno de bullying. Entre outras medidas, vi alunos de seis anos a escrever cem vezes a mesma frase simples que descrevia uma norma fundamental da escola, e vi alunos finalistas a receber um castigo colectivo - uns pelo seu comportamento aviltante e os outros por terem visto e não terem tomado claramente partido contra o que estava a acontecer.

Felizmente, e ao contrário do que aquelas pessoas andaram a dizer, no Colégio Militar vigoram outras regras. Segundo li no DN, um porta-voz do Exército assegurou que a direção do Colégio Militar "não promove nem compactua" com práticas discriminatórias e atua pedagogicamente junto da comunidade escolar visando preservar o bem-estar dos alunos e criar uma "cultura de inclusão".
Compete à direção do Colégio Militar "garantir as melhores condições a todos os alunos, preservando todo e qualquer aluno que tenha sido sinalizado como alvo de discriminação, agindo de forma educativa junto da comunidade escolar, de forma a ser criada uma cultura de inclusão e não de exclusão".
"A postura da direção do Colégio Militar (CM) é de não promover ou compactuar com comportamentos ou práticas discriminatórias, seja qual for a sua natureza, e atua pedagogicamente, com o intuito de preservar o bem-estar dos seus alunos ou alunas, junto do encarregado de educação e da comunidade escolar", declarou o porta-voz do Exército, tenente-coronel Góis Pires, em resposta a questões da Agência Lusa. Colocados perante uma situação que "configure um comportamento discriminatório seja de que ordem for", a direção do CM "envolve, compreensivelmente, os encarregados de educação, aos quais caberá tomada de decisão" sobre a melhor solução para o aluno ou aluna. 

Isto é que é falar! Se bem entendi, a escola assume uma posição muito clara de inclusão, e fala com os encarregados de educação dos alunos com práticas discriminatórias, para os envolver na resolução desse problema comportamental.

"Mas então castigam as vítimas e protegem os homossexuais?!", perguntarão alguns. À primeira vista, a reacção até pode fazer algum sentido. Em defesa das linhas de orientação que o Colégio Militar afirma com tanta clareza, vejamos de perto os argumentos apresentados a favor da exclusão dos alunos homossexuais:

1. "Queremos os nossos filhos em segurança"
Penso num episódio da minha própria adolescência: no recreio da escola, uma colega acusou-me de ser lésbica, por gostar de andar de braço dado com a minha melhor amiga. Foi desagradável, mas ninguém lhe deu ouvidos, nem houve cochichos, nem me chatearam. O que teria sido a minha vida, ou aquela fase da minha vida, se na escola se tivesse formado um movimento generalizado de rejeição por suposta homossexualidade?
Alguém quer o seu filho numa escola onde uma insinuação (tenha ou não um fundo de verdade) resulta numa perseguição por parte de todos os alunos da escola? Alguém tem dúvidas de que o risco de o seu filho ser vítima de uma brutalidade destas é muitíssimo maior que o risco de ser violado numa camarata? (Já agora: alguém deseja para o seu filho que, ao sair do armário, se torne vítima de bullying por parte de 600 colegas?)

2. "Eles andam nus nas camaratas e nas instalações sanitárias, o que se pode prestar a situações muito desagradáveis de voyeurismo e de proximidade física não desejada."
Compreende-se inteiramente. E pergunta-se: num cenário em que pura e simplesmente não se pode expulsar o aluno por suspeita de homossexualidade, nem se permite que ele seja rejeitado pelos seus pares, o que se pode fazer então para evitar situações dúbias? A solução mais simples é ter vestiários e sanitários individuais para os alunos que querem ocultar a sua nudez. A solução mais trabalhosa, mas também mais profícua, é um trabalho de educação para o respeito mútuo. Sei que é possível ensinar os alunos a conversar de forma aberta e justa sobre o que os incomoda (no infantário dos meus filhos havia crianças de 3 anos que já o conseguiam fazer - quem quiser saber mais, pode procurar "Ursula Thrush" e "peace table") e sei, por experiência própria como frequentadora de praias de nudistas e de saunas mistas que, se quiserem, as pessoas sabem estar num contexto de nudez sem usarem um olhar de devassa.

3. "Eles vão violar os nossos filhos". Este argumento é mais difícil de compreender. Por algum motivo que não entendo, há pessoas que acreditam que os homossexuais, todos os homossexuais, são abusadores. Espero que em algum momento abram os olhos para a realidade: homossexualidade e abuso não são sinónimos, e, por outro lado, há homens casados e com filhos que gostam de ter sexo com rapazinhos. Não há qualquer certeza nem sobre quem pode ser um abusador nem sobre quem está acima de qualquer dúvida, pelo que manter longe dessa escola os alunos homossexuais não resolve o problema da segurança - além de ser anticonstitucional, e uma injustiça e uma ofensa inaceitáveis. Mais vale preparar os nossos filhos para a eventualidade de serem vítimas de abuso, e para se saberem defender.

4. "Eles vão levar os nossos filhos para maus caminhos". Ouço muito este argumento, e não consigo entender o medo do efeito "maçã podre que vai estragar os outros".
Vejamos: eu podia ter a Ellen DeGeneres super apaixonada por mim a dormir na cama ao lado, e nem por isso sentiria a mínima vontade de, digamos, dar o corpo ao manifesto. Gostaria muito de conversar com ela, mas não sentiria desejo físico e não lhe alimentaria falsas esperanças. Por isso, não compreendo esse medo do "contágio".
O que leva as pessoas a temer que os seus filhos heterossexuais se possam sentir atraídos pelo caminho da homossexualidade? Que imagem têm da heterossexualidade - tão penosa, tão pouco convicta - que qualquer promessa de algo diferente a pode ameaçar?


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