03 abril 2016

"indústria"

Quem vai de Berlim para Breslau (Wroklaw), encontra uma cidadezinha simpática junto à fronteira com a Polónia: Forst. Nos anos 20 do século passado, Forst era um dos centros da indústria têxtil mais importantes da Europa. No coração da Prússia, no centro da Europa, numa encruzilhada de rotas, dali saíam todos os dias mais de mil toneladas de tecidos para os mercados nacional e internacional. Com as suas 450 fábricas, que empregavam um número de pessoas equivalente a 40% da população da cidade, chamavam-lhe a Manchester alemã. Foi muito destruída na guerra, e do centro da Europa passou para o bloco de Leste, na nova fronteira da Polónia. Décadas mais tarde, os edifícios e as máquinas que a guerra poupou acabaram desmantelados pelo processo da reunificação. Hoje em dia sobra um museu da indústria têxtil, e uma paisagem urbana ferida de edifícios industriais e palacetes abandonados.










Estive em Forst num sábado de festa, comemoravam os 750 anos da cidade. No Museu da Indústria Têxtil havia um mercado de velharias. Vendiam panos de cozinha da RDA, lindíssimos e sólidos, a 1 euro cada um. Trouxe dois, relíquias de um mundo que já não existe. A Atlântida aqui tão perto. Olhando a beleza e a qualidade daquele trabalho, até eu - que cheguei à Alemanha Ocidental 3 dias antes da queda do muro - sinto ostalgia com um desespero de dor fantasma.

Um rapazinho contou-me, muito orgulhoso, que tinha um desenho seu na exposição que iam inaugurar às cinco da tarde: "Forst - passado e futuro". O vencedor, confidenciou-me, ia ser o desenho de um amigo, que mostrava marcianos a chegar a Forst. Do antigo centro da Europa para o futuro centro do nosso universo. No entretanto, uma cidadezinha pacata e triste, com o seu esqueleto a desmembrar-se à vista de todos.



















No museu mostravam as máquinas, contavam as glórias do passado, expunham amostras dos tecidos. Comentei com uma amiga: "o que não faria um Armani com isto!" e o nosso guia sorriu. Mais à frente, mostrou-nos uma máquina que fazia entretela com crina de cavalo. "Patente nossa!", anunciou orgulhoso, e "nossa" era a cidade e eram os operários de Forst. "O Armani bem precisava da nossa entretela", comentou na minha direcção, "sempre que vejo os fatos dos políticos todos repuxados nos ombros, o Obama, o Hollande, esses todos, penso que os alfaiates deles precisavam da entretela feita pela nossa máquina!"
A máquina está parada há décadas. Já não se faz entretela em Forst.







"E porque não?", perguntei eu. Há um fenómeno que já vi também noutras cidades industriais da RDA, e não entendo: a destruição sistemática de uma capacidade produtiva instalada que funcionava, produzia objectos de qualidade excepcional, e que tinha mercado mundial se houvesse vontade para isso. Refiro-me, por exemplo, aos objectos de uso doméstico de vidro fino e resistente a altas temperaturas, da Jenaglass, com design da Bauhaus de Weimar. De um tempo áureo da indústria alemã, quando os cientistas se tornavam industriais e os operários tinham brio de artistas.
A minha pergunta despoletou um coro de lamentos. Tivesse eu visto as poucas-vergonhas que ali se passaram! As fábricas vendidas por um marco a investidores estrangeiros que levavam o que lhes interessava e desmantelavam o resto, as pessoas da terra unidas, a juntar todas as poupanças para poderem comprar a sua fábrica, e a Treuhand a recusar vender. Parecia que só estavam interessados nos grandes investidores, esses predadores que destruíram tudo.

Conheci um caso desses na Turíngia. O chefe do projecto veio dos EUA com o objectivo de tornar viáveis as empresas do pacote que a sua firma comprara, para as vender a seguir com lucro. Vivia numa das melhores casas da cidade, tinha um carro de luxo. Contou-me, a rir, uma disputa que teve com a responsável dos recursos humanos, que não concordava com a lista de despedimentos que ele fizera. Ela dizia que não podiam despedir aquela mulher que criava sozinha dois filhos, nem o outro que tinha cinquenta anos e uma família ao seu cargo, e ele respondera "você trabalha para mim, ou para os sindicatos?" Ria-se, muito satisfeito da sua piada. E eu pensava na solidão daquela mulher sem pátria, que não trabalhava nem para um nem para os outros, trabalhava para não deixar morrer uma moral empresarial fundada na decência e na atenção aos seres humanos. O americano contava-me isto enquanto trabalhava na cozinha, com a água da torneira a correr sem fim. Chamei-lhe a atenção para o desperdício de água, mas ele não fez caso. "Gosto do som da água a correr, é tranquilizante." Predador.
Por essa altura Müntefering, um responsável dos socialistas, usou a expressão "praga de gafanhotos" para descrever o actual fenómeno de um capitalismo radical, que procura o máximo lucro sem a menor atenção aos custos sociais. Falava sobretudo dos investidores anónimos na bolsa, mas o panorama desolado das indústrias destruídas da antiga RDA e os bandos de neonazis nas ruas revelam dolorosamente as consequências da passagem de empresários com mentalidade de gafanhotos.

A nossa visita ao museu continuou. Puseram algumas máquinas a trabalhar, um ruído ordenado e mecânico, ensurdecedor. Visitantes começaram a contar uma versão diferente do que até então me parecia ser o paraíso perdido. Disseram que quase todos os habitantes da região sofrem de surdez, porque tinham passado a vida dentro daquelas fábricas, no meio daquele ruído. Recusavam-se a usar protecção dos ouvidos, porque queriam estar atentos à menor mudança de ritmo, sinal de que havia um problema com a máquina. "A minha avó trabalhava aqui, com a ajuda dela consegui um lugar de estágio, como era obrigatório para todos os estudantes do secundário", disse uma senhora. "Foram dias horríveis."
Estava a voltar ao lugar onde foi infeliz.

Saímos do museu e fomos para o moinho, onde também havia festa. O caminho estava engalanado com guirlandas garridas feitas com trapos de tecidos antigos. A alegria dos pobres que tentam fazer a festa com o pouco que lhes sobrou.





5 comentários:

bettips disse...

Resistência... o nosso Norte aqui tão perto e as fábricas têxteis nos anos 80 entregues a "gerentes-administradores bancários"... Ou, com fundos comunitários, filhos dos patrões com carros de luxo (conheci dois que se espetaram perto das fábricas dos paizinhos...)
Uma reportagem belíssima e acertada: voltar onde se foi infeliz - e não se sabe nunca o que é a felicidade!
Abç

Jaime Santos disse...

Fica registado para a próxima vez que for a Berlim. Recordo-me de ter visto uma reportagem em que uma senhora proveniente de Berlim Oriental se lamentava da demolição do 'Palast der Republik', que no final teve pelos vistos que ser demolido por causa do amianto. Dizia ela que parecia, pela atitude de quem então mandava, que eles, os Ossis, nunca tinham tido política cultural. Parece que lá foi entretanto construído um centro comercial pela Sonae, creio... Credo!

Helena Araújo disse...

Jaime,
isso mesmo: parece que o Palast der Republik era todo feito de amianto, não sobrou absolutamente nada dele. Uma vergonha! Uma falta de respeito insuportável.
O centro comercial da Sonae é o Alexa, que foi construído noutro local (Alexanderplatz). Não tem nada a ver.
O que está a ser construído mais ou menos na área onde ficava o Palast der Republik é um edifício que imita o antigo palácio do Kaiser (que foi destruído pelo regime comunista, também por motivos ideológicos).

jj.amarante disse...

Quando passei 3 semanas em Macau em serviço em 1990 num dos fins de semana fui a Cantão de carro e numa ponte duma povoação por onde passei vi muitas chaminés como na imagem com que começa este post, pode vê-la neste post (http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2008/07/ainda-china.html), é a última. No Porto também havia umas chaminés mas acho que era de padarias, nada que se parecesse com essa floresta.

Paulo Topa disse...

Em certa medida, é exatamente igual ao que se passa em Vila das Aves e arredores. Contudo, parece-me que, se as coisas fossem adaptadas aos tempos atuais, os ex-trabalhadores e as pessoas daqui perto ficariam todos contentes com os novos empregos.
O mundo está sempre a mudar e, para o bem e para o mal, há quem faça algo semelhante mais barato.