06 abril 2016

boicotar a Dolce & Gabbana




Se bem entendi o que escreveu no Observador, é isto: a Maria João Marques apela ao boicote da Dolce & Gabbana como reacção ao surgimento de uma linha especial de vestidos de freira para as lojas da Via dei Cestari, em Roma. Esta decisão da empresa junta-a "ao lado negro da força que impõe indumentárias simbólicas da opressão e do desrespeito dos direitos humanos das mulheres. O que convoca, claro, um boicote à empresa por todas as mulheres de boa vontade".

No seu artigo, Maria João Marques cita a ministra francesa Laurence Roussignol, Que acusa certas marcas ocidentais de "colaborarem no controlo social dos corpos das mulheres, estarem a vender os princípios ao lucro" e "comparou até as mulheres que viam com bons olhos estas indumentárias como os ‘negros que apoiavam a escravatura’".
As Escravas do Sagrado Coração de Jesus mandaram dizer que não conseguiram acompanhar muito bem a lógica deste argumento.

Cita ainda Pierre Bergé, da Yves Saint Laurent: ‘Estou escandalizado. Os designers existem para tornarem as mulheres mais bonitas, para lhes darem liberdade, não para colaborarem com esta ditadura que impõe esta coisa abominável que esconde as mulheres e as faz viver uma vida escondida. Estes criadores estão a participar no aprisionamento das mulheres e deviam perguntar-se a si próprios várias questões’. Mais: ‘Desistam da massa. Tenham convicções. Defendam as convicções’.

Do lado oposto, mais concretamente, do Vaticano e suas ramificações, esbracejaram-se argumentos. Uma responsável das Filhas da Bem-aventurada Virgem Maria opinou ser uma questão de liberdade vender e vestir roupa que siga os preceitos católicos. As Servas do Sagrado Coração de Jesus tiveram "a sonsice de aconselhar mais atenção ao que as religiosas são como pessoas em vez de ao que vestem". 

A Maria João Marques critica, e muito bem: "Como se a forma de nos vestirmos não fosse uma maneira extraordinariamente eficaz de nos exprimirmos e de revelarmos a nossa personalidade."
E acrescenta: "Garanto a toda a gente que as cores das minhas carteiras, ou o abundante roxo ou azul-turquesa na roupa, brincos, anéis e sapatos, são inteiramente eu."
Ora aqui está uma informação preciosa! Há anos que olho para as fotos da Maria João Marques e penso "eu conheço esta cara, tenho a certeza que a conheço de algum lado". Finalmente caiu a ficha: é a Maga Patalógica.


Adiante, que a crítica impiedosa à Igreja Católica não termina aqui.
A autora continua: "como se o modo como nos apresentamos vestidos não condicionasse a nossa relação com os outros, seja porque uma mulher toda coberta convida a criar distância (que é, lá está, o objectivo dos panos pretos), seja porque a cara tapada e linguagem corporal mitigada por roupa larga e comprida exterminam parte da comunicação."
Mais um mistério que se explica: porque é que ninguém aguenta a proximidade das irmãs de caridade (ele é - milagre! milagre! - paralíticos que de repente começam a correr para saltar pelas janelas do hospital confessional, ele é idosos nos lares das freiras a morrer antes do tempo porque não aguentam viver num contexto de distância e recusa de comunicação, ele é crianças nos infantários das paróquias incapazes de dormir porque têm pesadelos com pinguins gigantes).

Outro ponto muito pertinente da crítica: a obrigação de as mulheres cobrirem certas partes do corpo quando entram nas igrejas. Mesmo que as visitem por motivos profissionais, os costumes impostos pela moral do Vaticano são intransigentes: nada de braços à mostra ou decote fundo. Pelo que os sindicatos estão muito bem quando exigem que, dada a imposição dos preceitos morais totalmente desadequados ao nosso tempo, as mulheres possam recusar trabalhar nesses locais.

A autora remata lapidarmente: "marcas como a Dolce & Gabbana ou a DKNY, que tentam dar glamour a indumentárias que são símbolo de opressão, merecem agravos. As mulheres – e os homens – também podem exercer a sua liberdade e comprar noutro lado. As escolhas de consumo são com frequência escolhas políticas e morais."

Toma, Vaticano! Embrulha.

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Como provavelmente já repararam, a Maria João Marques estava a criticar as empresas de alta-costura que resolveram criar uma linha especial para certas exigências da moda em países islâmicos onde há clientes com muito, mas mesmo muito dinheiro. Eu limitei-me a usar as suas frases para uma situação que nos é mais familiar.

O presente post serve para partilhar convosco a alegria de finalmente ter esclarecido esta dúvida que me atormentava há anos, a "de onde é que conheço esta cara?", e para lembrar que em todas as sociedades há tradições estranhas e até ofensivas para os próprios valores dessa sociedade. A Igreja Católica é um manancial de exemplos, mas há mais: a humilhação e a subjugação aos instintos sádicos de uma autoproclamada autoridade na praxe universitária; as práticas empresariais de exploração sistemática dos jovens à procura de um emprego estável; o assédio verbal na rua, que muitas mulheres defendem (como é que era mesmo aquela história de os negros acharem bem a escravatura?).

Não é que as nossas práticas desumanas e humilhantes desculpem as dos outros, mas convém olhar em volta cuidadosamente antes de desatar a atirar pedras ao calhas como o cão do Pavlov, que entretanto ficou cego, coitadinho do bicho.

A grande diferença entre a roupa das congregações religiosas femininas perfeitamente aceites na nossa própria sociedade e as peças que a Dolce & Gabbana criou para aqueles mercados é que estas são muito mais sexy. (Podem ver aqui).
E não, Maria João Marques, não fizeram nenhum niqab e não taparam a cara a mulher nenhuma. Isso de ler "hijab e abaya" e fazer um texto com "niqab" no título parece um reflexo condicionado por uma cegueira obsessiva.


1 comentário:

jj.amarante disse...

A Dolce e Gabbana é mais ousada do que o que se via nalgumas montras no Cairo em 2006, há já 10 anos como o termpo voa: http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2008/11/montras-no-cairo-e-em-argel.html