01 abril 2016

a carruagem para mulheres que afinal era doze lugares reservados perto da cabine do pessoal de bordo


A notícia em português diz que a empresa Mitteldeutsche Regiobahn vai criar duas carruagens para mulheres, para incentivar um ambiente mais seguro para todos os viajantes do sexo feminino.

Em alemão (Freie Welt, Süddeutsche, Freie Presse, MDR Sachsen, Die Freie Welt, Spiegel) leio que:

- A pedido de algumas mulheres, essa empresa vai reservar em cada comboio da ligação Leipzig-Chemnitz dois compartimentos (de seis lugares cada) perto da cabine do pessoal de bordo, para mulheres que viajam sozinhas ou com crianças.
- Na ligação Leipzig-Chemintz a companhia ainda usa carruagens da antiga RDA, divididas em inúmeros compartimentos que são espaços pequenos, fechados e com pouca visibilidade. À noite os corredores são bastante escuros, e ao entrar no compartimento é preciso procurar o interruptor de luz para a acender. Cada comboio tem quatro carruagens deste tipo, e ainda uma quinta, aberta e de construção mais moderna, que é sempre a primeira a encher. É compreensível que as mulheres se sintam inseguras: ao contrário do que se passa nas carruagens abertas, as hipóteses de saídas de emergência são muito reduzidas, e ninguém vê o que se passa dentro dos compartimentos.
- A companhia oferece este serviço para reforçar o sentimento de segurança das mulheres, mas insiste que a medida não tem nada a ver com os incidentes na passagem de ano em Colónia.
- A medida não é inédita. Na Suíça houve um projecto-piloto há 15 anos que, por falta de procura, foi substituído por outro sistema de segurança. Na República Checa houve uma associação de pais (homens) que protestou contra este regulamento semelhante ao apartheid. Na Grã-Bretanha debate-se uma sugestão semelhante do trabalhista Jeremy Corbyn, e há quem a critique por "poder ser sentida como ofensiva, humilhante e embaraçosa tanto por homens como por mulheres". Esta possibilidade já é posta em prática em diversos países (Japão, México, Indonésia, Egipto, Brasil, etc.). Nos comboios nocturnos, há muito que a Deutsche Bahn oferece compartimentos de cama só para mulheres.
- Há um estudo da Middlesex University sobre a segurança das mulheres nos transportes públicos que condena este tipo de solução, considerando-o um retrocesso. (O estudo parece-me muito bom: podem ler aqui. A parte relativa aos compartimentos só para mulheres começa na página 43.)

A medida deu azo a um enorme debate:
-- O Freie Welt pergunta: se se criam lugares especiais para mulheres, apesar da importância que damos à igualdade de género, o que se pode dizer da necessidade de segurança de outros grupos? Lugares especiais para pessoas com ar de estrangeiro (talvez separados por etnias inimigas), para homossexuais, para pessoas da extrema-direita e para pessoas da extrema-esquerda, por religiões? A lista de conflitos possíveis é infindável. A questão é: queremos responder a necessidades pontuais, ou discutir sobre os valores da nossa sociedade, e a melhor maneira de os proteger?
-- Os Verdes da Saxónia (o Estado onde esse comboio circula) não vêem mal nenhum nesta medida: as mulheres não são obrigadas a usar os lugares reservados; se não houver procura, pode-se desistir desta oferta. Os Linke têm oposição contrária. Um deputado deste partido afirma que já não estamos na Idade Média, nem no princípio do século passado, e pergunta se devemos esperar que se siga uma separação por género das salas de espera, das lojas e das piscinas. Enviou ao governo da Saxónia um pedido para se pronunciar sobre estas medidas, e também para dar informações sobre os ataques nos comboios e nas estações.
-- Frauke Petry, da AfD, afirma que a separação entre homens e mulheres é um retrocesso, e que o Estado tem de garantir a segurança das pessoas. "Mas a política está a falhar cada vez mais. Para melhorar esta situação, é preciso fazer mudanças urgentes na Polícia e na Justiça."
-- As redes sociais e as caixas de comentários dos sites informativos estão cheias de comentários sobre a ameaça islâmica, a invasão dos costumes islâmicos, as nossas mulheres terem de se sujeitar à sharia, os refugiados serem uns ingratos que não respeitam os nossos costumes, etc. - A medida, que não tem nada a ver com a chamada "ameaça islâmica", está a ser usada para alimentar a xenofobia e a islamofobia. Curiosamente, no Estado de Sachsen só 2,2% da população são emigrantes, e desses, os grupos maiores são vietnamitas e russos (ao contrário dos turcos, no total da Alemanha).

No twitter há um novo hashtag, #ImZugPassiert (acontece no comboio), no qual as mulheres contam incidentes em viagens ferroviárias. Certas reacções de alguns homens mostram a tendência para ignorar que o sexismo é parte normal do quotidiano das mulheres na Alemanha. Em reacção à incredulidade e ao gozo, há quem comente que as mulheres só são levadas a sério quando o atacante é um refugiado.
Alguns relatos (imaginem-se as cenas num cubículo de seis lugares, com uma porta pesada que fecha automaticamente, e sem ninguém a passar no corredor):
"Quando tinha 15 anos, um homem pôs-se a apalpar os genitais por cima das calças e a olhar fixamente para mim"
"Um homem não me deixou em paz durante toda a viagem, saiu na mesma estação que eu, e tentou seguir-me até casa"
"Homens que se sentam reclinados e se masturbam à minha frente. Já me aconteceu várias vezes."
"Viajo com duas meninas de 13 anos. Está calor, ambas têm vestidos curtos. Um homem que passa no corredor mete o telemóvel dentro do compartimento e fotografa por baixo das saias"
"Um grupo de homens está a importunar-me. Peço ajuda ao revisor e ele, com uma piscadela de olhos, diz-lhes: 'rapazes, agora portem-se bem com esta senhora' "
" Homens sentados à frente de uma mulher com um bebé conversam sobre as suas fantasias de violação."
"Um homem apalpa-me, eu protesto em voz alta, as pessoas à minha volta olham para mim fixamente."

O estudo da Middlesex University sintetiza desta forma:

Sexual harassment and assault on public transport1 is an international daily occurrence. The behaviours involved may range from the relatively mild to the very serious. These include, but are not confined to, lewd comments, catcalls, ogling/leering, innuendos, sexual invitations, threats, displaying pornography, staring, being followed or photographed, masturbation, frotteurism, unwanted sexual touching, and rape. 
Specific public transport contexts may facilitate such activity. The environment is hard to control, being open to anyone, yet simultaneously predictable in terms of passengers, who are sedentary, unable to exit safely or quickly, and often unguarded. Overcrowding and isolation are also key features that may enable sexual offending. For example, crowded, enclosed rush hour conditions, may facilitate rubbing against a woman on an underground carriage. Conversely, women may be more vulnerable when public transport is largely deserted or stations are isolated.
(...)
Perhaps the most fundamental behavioural effect of experiencing unwanted sexual behaviours is the impact upon mobility. Such experiences, or the fear of them, may make women feel that they have to adopt self-protection strategies, such as altering what they wear, or positioning themselves in certain ways, such as leaning against walls so that nobody is behind them. Some women have also reported putting bags between themselves and other passengers, adopting ‘deadpan’ expressions, avoiding eye contact, travelling with a male companion, and/or travelling in groups. If acutely afraid of travelling on public transport women may simply not do so or may restrict themselves to times when they feel safer. Others may seek alternative, less convenient or more expensive ways to travel such as taxis or personal means of transportation instead. However women in areas of low income or high deprivation, or in countries with a wide income disparity, often do not have access to cars and are likely to become ‘transit captive’ if their options are restricted.


Nas redes sociais portuguesas também houve muita discussão. Infelizmente, foi muito condicionada pelo erro da notícia (não são "duas carruagens para as mulheres"), e revelou a impossibilidade de combinar a luta por uma situação ideal com a necessidade de resolver hoje um problema concreto. Concordo que é preciso educação cívica, muito trabalho nas escolas, campanhas de sensibilização, medidas de empowerment das mulheres, e coragem civil. Mas enquanto isso não é posto em prática e começa a dar abundantes frutos, há que dar algum recurso de segurança a uma mulher que viaja sozinha num comboio de compartimentos pequenos, fechados, e com péssima visibilidade.

Compreendo até certo ponto os argumentos contra esta medida. Até certo ponto:

- Uma medida que menoriza as mulheres, e reforça os preconceitos de género.
Pior menorização das mulheres é recusar-lhes o apoio que pedem para poderem andar com segurança em certos comboios. Mesmo correndo o risco de "reforçar preconceitos", não se pode ignorar a existência da violência de género.

- Uma ofensa para os homens.
É verdade. Para não melindrar os homens, devemos recusar às mulheres a possibilidade de terem acesso a lugares onde se podem proteger melhor da violência de género?

- Vamos agora criar lugares reservados para proteger os negros dos ataques de skinheads e os refugiados dos ataques de neonazis?
Melhor seria perguntar às potenciais vítimas. Na Saxónia, o Estado onde circulam estes comboios, há um problema gravíssimo de xenofobia e racismo. Devemos deixar os refugiados entregues à sua sorte, em nome de um ideal de não discriminação que está muito longe de ser realidade? Lembro uma amiga, responsável por um centro de refugiados, que levou os miúdos do centro para um campo de férias. No regresso, de comboio, um par de neonazis insultou e ameaçou as crianças e destruiu os seus pertences. Quanto não daria a responsável para poder viajar num compartimento que oferecesse mais segurança àquelas crianças?

- Esta medida é um atentado à igualdade de género.
Pois é. Mas favorece a equidade: permite às mulheres viajar sozinhas em transportes públicos, em vez de escolherem entre ficar em casa, andar de carro/táxi, ou correr o risco de uma experiência desagradável e traumatizante.

- Áreas reservadas a mulheres é um sinal de que o mundo é dos homens, e que as mulheres se devem confinar à área reservada para elas.
Boa questão, sem dúvida. Mas haver, num comboio para várias centenas de pessoas 12 lugares reservados a mulheres não é ainda um caso de apartheid.

- Se uma mulher não se sentar no lugar reservado para ela está a sinalizar que não se importa de ser alvo de abuso por parte dos homens.
Não vejo os homens como um bando de tarados à espera da primeira desculpa para me saltar para cima. Pode ser que me engane, hehehe, mas parto do princípio que a maior parte dos homens que anda nos transportes públicos são pessoas decentes, que nunca se lembrariam de usar tal argumento para me faltar ao respeito. Os que seriam capazes de recorrer a esse argumento são os que já têm uma predisposição para o abuso - e nesse caso, ainda bem que há os tais lugares onde eles não podem incomodar as mulheres.

- E porque não chamar a polícia e prender o abusador na paragem seguinte?
Pode ser, claro, mas lembra-me logo os argumentos dos adversários da criminalização do piropo: e a polícia está disponível para isso? e como é que provas? e vais incomodar o sistema de justiça por tão pouco?

- Lugares reservados a mulheres podem conter em parte os ataques sexistas nas viagens de comboio, mas não resolvem o problema de fundo.
A solução está muito longe de ser a ideal, mas enquanto a violência de género nos espaços públicos for uma realidade, e enquanto não se arranjar uma solução melhor, há que dar uma resposta concreta aos problemas concretos das mulheres que hoje querem andar naqueles comboios.


4 comentários:

Isabel disse...

Um absurdo!
Seja qual for o motivo, é um retrocesso!

Boa noite:)

Helena Araújo disse...

É um retrocesso.
se a Isabel fosse a dona da empresa, que resposta dava a estas mulheres que se queixaram da insegurança naqueles comboios?

Rui Diniz Monteiro disse...

Já há muito tempo que percebi que a ausência de lei e/ou a neutralidade é colocarmo-nos do lado dos mais fortes e, portanto, dos agressores. Eu opto sempre pelo lado dos mais fracos e das vítimas.
Esta medida pode ser muito discutível mas, no fim da linha, fica sempre a questão: Como proteger os mais fracos, as vítimas? A resposta não é perfeita, é parcial, mas contribui para os proteger? Então, sou a favor.
Os homens que demonstrem no seu dia a dia que esta medida é desnecessária. Enquanto não o fizerem...

Helena Araújo disse...

Olá Rui,
há quem se sinta muito chocado com isto, por uma questão de princípio. E tem razão. Mas, como tu, vejo também o lado dos mais fracos: a resposta não é perfeita, mas enquanto alguns homens continuarem a ter aquele tipo de comportamento, é preciso atender ao pedido das mulheres que pedem mais segurança.