03 março 2016

pressinto que tenho com que me habilitar a uma fatwa minhota



Pelo que tenho lido por aí, o livro "Alentejo prometido", do Henrique Raposo, é um retrato do Alentejo a partir de um conjunto de histórias pessoais ou que ele ouviu a terceiros. Infelizmente, o retrato não terá merecido o aplauso geral - aliás, ainda poucos leram o livro.
Não terá merecido aplauso e, pelo contrário, parece que o autor tem agora uma fatwa alentejana à perna, e que vai haver polícias no lançamento do livro.

(Uma pessoa escreve "fatwa alentejana" e começa logo a pensar em anedotas, tipo: coitado do Raposo, vai ter uma morte lenta.)

(Mas calateboca, que bem sei que os alentejanos não merecem.)

(De facto, há anedotas que me fazem rir - por exemplo: alentejanos, Samora Machel - mas me provocam um certo sentimento de culpa. A ideia da anedota é engraçada, mas já não tem tanta graça dar essa ideia das pessoas. Claro que me podem dizer que toda a gente sabe distinguir entre uma anedota sobre um grupo, e a realidade do grupo. Mas tenho as minhas dúvidas. Nomeadamente depois de ter ajudado um colega brasileiro, e ele, muito agradecido:
- Nossa, Helena, você é tão legal - não fazia ideia que os portugueses são legais assim.
- Desconfio que andaste a ouvir demasiadas anedotas de português!
- Pois é...)

Em todo o caso: invejosa como sou, também me apetece uma pequena fatwa à portuguesa. Vou experimentar provocar uma fatwa minhota: junto algumas histórias da minha infância, teorizo a partir delas (muito à maneira daquela velha piada "todos os índios andam em fila indiana - pelo menos o que eu vi, andava") e depois é só arranjar um pateta que me publique o livro sem eu ter de pagar o meu trabalho e o dele.

Conto a história da Ana, a antiga empregada da minha avó, que para me mostrar que o filhinho dela era fino como um alho lhe gritava "ai foge, meu filho da puta, que se te apanho fodo-te os cornos todos!", e ria da esperteza do pequenito, que fugia a toda a velocidade nas pernas bambas. Já tenho aqui muito com que encher chouriços no capítulo "A ternura rude dos pais minhotos".

Conto o bairrismo ferrenho das aldeias - as raparigas que não podiam casar na freguesia vizinha, os gentílicos inventados para insultar os de fora (por exemplo: chamavam Bilachuôtos aos de Vila-Chã). Seria o capítulo "As vizinhas da ira".

Conto o episódio daquela mulher a quem deu uma urgência no meio dos campos, e aninhou-se ali mesmo, por azar logo na altura em que passou um compadre, que não tinha como fazer de conta que não via, de modo que se lançou na fuga para a frente, olhou a direito para ela e disse "é a vida...", e ela, aninhada e de pernas escanchadas, "tem de ser!". Podia chamar a este capítulo "Diálogos bucólicos".

Conto histórias da criada do padre, e teorizo sobre... - oh, isto aqui dava para vários capítulos, todos eles de sumarento nome.

Conto sobre aqueles súbitos restolhares - na loja do vinho, no palheiro, num quarto onde não devia estar ninguém. "Apontamentos para uma petite histoire do sexo furtivo".

Faço uma compilação de máximas. Ah, as frases dos minhotos! Uma das minhas favoritas é "oh, os ricos também cagam e meijam como a gente!" - quais comunismo quais carapuça, os minhotos resolvem a luta de classes a seu favor com uma simples frase.

E as histórias de cemitérios. O suicídio está para os alentejanos como o cemitério para os minhotos. Tenho histórias de trágico surrealismo e maravilhoso fantástico. O García Márquez, comparado com as minhas histórias de cemitérios, é um menino de coro.

Ora então, é arregaçar as mangas e começar a escrever. Tenho a certeza que vou ficar tristemente célebre. Fatwinha, és minha!


5 comentários:

Rita Maria disse...

Eu já te lancei uma fatwa minhota por pores ervinhas na canja, tu é que não ligaste nenhuma à minha fatwa.

AnaMar (pseudónimo) disse...

De certeza que sou uma, entre muitos, que compram o livro. Força! :-)

Helena Araújo disse...

Rita,
és o Komeini da culinária! :)

AnaMar,
o livro vai ter de ser caro, para me poder pagar o enterro... ;)

Unknown disse...

Eu também vou comprar. Sempre quero comparar as "fatwa's".
Porque, para um alentejano de gema não fatwa que supere a
Alentejana!
FGL

Lucy disse...

aguardo ansiosamente esse lançamento