23 julho 2015

proibido ser



Quero mais. Não se admite fazer um livro que acaba mal uma pessoa começa a ler. Então que é isto, este fim abrupto, agora que estava a saber tão bem (e sabe bem desde a primeira frase)? Mais cem páginas de proibições, isso é que era. Raixparta o Estado Novo, que nem isso fez bem feito.

O livro do António Costa Santos é feito daquela inteligência mordaz que consegue combinar leveza e profundidade, seriedade e humor no ponto certo para tornar a informação um acto de prazerosa leitura.

Já isso bastava para ser um livro excelente. No meu caso, trouxe um ganho acrescido: entendi finalmente uma frase muito estranha que uma vez um padre me disse, a propósito da minha mãe, que ele conhecera no início dos anos sessenta. "A sua mãe era um bocado leviana", disse-me ele em jeito de confidência desconfortável. "Leviana", como eu entendo essa palavra, não era, sei-o bem. O livro do António Costa Santos foi-me revelando, capítulo a capítulo, as "leviandades" dessa mulher (e o poder opressor dos costumes, desde logo evidentes nas palavras com que catalogava): na missa, sentava-se ao lado do marido, em vez de ficar no lugar das mulheres, e esquecia-se muitas vezes de cobrir a cabeça com o véu; as pernas sem collants no verão, e dentro de calças no inverno (tinha uma fato lindo de pré-mamã, de calças e capa - era lindo, mas era a única grávida da cidade que andava de calças); as intermináveis cervejas que bebia com uma amiga no café da aldeia da minha avó: a mesa delas no meio de uma clareira espaçosa sobre o chão coberto de serrim, os meus irmãos e eu a apanhar barrigadas de tremoços e a deitar as cascas para o chão, para cima das escarradelas dos homens à nossa volta, nas outras mesas só havia homens; os cursos de verão em Paris, deixando os filhos com o marido ou os avós; o curso superior tirado em regime de acumulação com o trabalho e a maternidade; a teimosia da atitude, o "que mal tem?", o "e qual é o problema?" Em suma: leviana, porque afirmava a sua liberdade de forma inegável - não em debates ou revoltas, mas da maneira mais perniciosa para a época: sendo.  

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Um dos documentos mais hilariantes do livro é a lista de multas para certos comportamentos contra a moral e a ordem pública. "A mão naquilo", "aquilo na mão", "aquilo naquilo". Confesso que precisei de ler duas vezes para perceber que "aquilo" não era sempre a mesma coisa, e que "aquilo por trás daquilo" não havia de ser uma referência aos livros proibidos, arrumados em segunda linha nas estantes.
A falta que as aulas de educação sexual fazem a um legislador! Se as tivesse frequentado, saberia articular-se de forma mais clara, de modo a não deixar os agentes da ordem pública (e a mim) perplexos a tentar decifrar charadas. Ao menos, que escrevesse: aquilo na mão, a mão naquila, aquilo naquila, aquilo naqueloutro. Sim, que chamar "aquilo" a "aqueloutro" revela um profundo desconhecimento das leis da natureza, tão ao gosto dos defensores da moral. Esses legisladores haviam de ser pouco perversos, haviam.


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