22 julho 2015

primeiro dia


Diz que isto é um blogue, diz que é um diário, e por isso tenho andado a pensar descrever o meu primeiro dia de férias, mas hesito, porque não sei a quem interessaria saber que o despertador tocou justamente no momento mais aflitivo do meu sonho de não ter acordado a tempo, quando já estava a perder o táxi e o avião. Eram cinco da manhã. Notei a aliança na mão direita, sinal de que tinha de me lembrar de alguma coisa. Não me lembrei, pelo que optei por achar que talvez fosse o impermeável. Às cinco e quinze estava dentro do táxi, depois de o Fox ter incomodado o condutor, que era muçulmano (como seria a minha vida num país no qual as cobras fossem animais domésticos, e viessem velozmente ao meu encontro para eu lhes fazer festinhas?). Em Bruxelas estava frio e chovia. Saí do aeroporto para levar o Fox à casa de banho, e por sorte encontrei um naco de verde que lhe serviu de urban jungle, meia hora de gozo a escavar túneis em busca de ratos, e eu ali à chuva, bendito impermeável que trouxe de casa. Voltei a entrar no aeroporto, a passar no controle de segurança (é muito engraçado ver os sorrisos dos seguranças quando o Fox passa o detector de metal no seu passo de trote) e comprei trufas belgas para todos os que me aconselharam que roupa levar para esta viagem, excepto para quem me disse que não precisava de um casaquinho de inverno (já disse que em Bruxelas estava frio?), e foi então que me lembrei porque é que tinha posto a aliança na mão direita: sacos térmicos para levar as trufas! Quer-me parecer que este ano os meus amigos vão receber pequenas porções de fondant de chocolat.
O avião sobrevoou o Porto. Descobri que, vista de cima, a Ribeira não é nada espectacular, é apenas um conjunto de telhados iguais aos que se alargam por toda a cidade. Mas a verdade é que nenhum telhado é igual, cada um abriga histórias diferentes. Muitos deles abrigam histórias minhas, e procurei-os. Entrei no Porto com o coração alvoroçado de recordações boas.
Fui levar as malas a casa, visitar a vizinha. Contou-me da morte súbita de uma senhora com quem eu costumava estar na praia. Ela com uma doença crónica grave, foi regar o jardim e pouco depois encontraram-na morta, talvez o coração. Foi no momento em que a irmã chegada da França estava a descarregar o carro antes de ir ter com ela para lhe contar a grande surpresa: que ia ficar em Portugal para a acompanhar nesta última fase da caminhada. Não deixes para amanhã a alegria que podes dar hoje.
Fui a Viana, no Natário as bolas de Berlim estavam a sair ainda mornas. Na praça da República li num cartaz que os sobreviventes do Buena Vista Social Club vão passar por lá, e ali mesmo troquei as voltas aos meus planos e comprei bilhetes para o próximo sábado. Fui à Bertrand e comprei o Proibido, do António Costa Santos, O Mundo de S. J. Perelman, da colecção do RAP na Tinta da China, e a Granta que dizem que desta vez falhou com brio. Quase comprava também todos os poemas do Ruy Belo, todos os do Herberto Helder, mas decidi que já tinha a minha porção de alegrias para um primeiro dia de férias.
Passei de novo pela casa da vizinha, e ofereceram-me pataniscas de bacalhau e ovos do campo (ah, estas pataniscas feitas com bacalhau do campo!) e depois fui buscar a Christina que vinha no avião da noite, e quase chorou ao saber que vamos ver a Omara Portuondo no próximo sábado. O Fox fez-lhe imensa festa, mas depois ficou inquieto, e olhava para fora do carro com ar de onde estão os outros? onde estão os outros?
Este ano não podem vir, Fox. E que tristes vão ficar ao saber do nosso concerto, e das bolas de Berlim ainda mornas, da buganvília densíssima de flores na janela da cozinha, da brisa que passa agora por este post enquanto escrevo sob a ramada prenhe de uvas, no cantinho da internet ao fundo do quintal.
Um post que não interessa a ninguém, mas diz que isto é um blogue, um diário.  


5 comentários:

Gi disse...

Um belo primeiro dia (excepto em relação à tua companheira de praia).
O Fox passa sozinho os detectores de metais? O Jr vai ao meu colo... Mas se calhar passa a ir a pé!
Bacalhau do campo, Helena? :-D

inconfessável disse...

Eu gostei muito.

Lucy disse...

interessa sempre e dá para fazer um roteiro de férias

calita disse...

Ando tão metida no meio de caixotes que ainda não tinha lido isto. Que maravilha!

Helena Araújo disse...

Calita, até o fui ler de novo, para ver o que teria de tão especial! :)


Lucy, o meu roteiro de férias é simples, desta vez: não fazer nada.
(por acaso hoje já estou atrasada para ir a Espanha comprar livros espanhóis para a Christina...)

Gi,
se calhar é por isso que as pessoas ficam tão bem dispostas: não estão habituadas a ver um cão passar pelo seu pé...
Bacalhau do campo, sim: é outro sabor! ;)