12 junho 2015

o "orgulho" não é para meninos



Será que o José António Saraiva não tem um bom amigo que o agarre de cada vez que ele quer escrever sobre os homossexuais, alguém que lhe diga com muita amizade "deixa lá isso, homem, olha que te desgraças outra vez"?

Vem isto a propósito da sua crónica mais recente, "o armário". Concordo inteiramente com o que diz sobre o direito à privacidade: "todos têm direito à reserva da sua vida privada e não têm nenhuma obrigação de virem a público dizer se são homossexuais, heterossexuais, bissexuais, bígamos ou indiferentes." E diria mesmo mais: violar a privacidade das pessoas, seja por que motivo for, é sempre um acto perverso e pérfido. E apelar a que as pessoas revelem de si aquilo que não querem revelar é manipulação e falta de respeito. Ninguém pode ser forçado a fazer-se bandeira de uma causa, seja ela qual for.

O problema é o resto da crónica. José António Saraiva já começa mal ao repudiar a crítica feita ao cardeal que considerou o resultado do referendo irlandês sobre o casamento para casais do mesmo sexo como "uma derrota para a Humanidade". Fá-lo com argumentos de uma surpreendente candura: "tenho o bom senso de perceber que não é um atrasado mental qualquer que chega a cardeal de uma Igreja com mais de dois mil anos". Infelizmente, em dois mil anos a Igreja acumulou uma impressionante carga de pecado (entendido como um afastamento da Verdade de Jesus Cristo), que se revela também nos seus cardeais. Nem a antiguidade é um posto, nem o posto é sinal de infalibilidade. O dogma da infalibilidade papal tem apenas alguns anos mais que a minha avó, e nem sequer se aplica a tudo o que um papa diz - quanto mais aos dizeres dos cardeais! Exemplos de cardeais que cometeram falhas gravíssimas não faltam por aí: desde os responsáveis pelo Banco do Vaticano até aos que encobriram os casos de abuso sexual de menores - e é para dar apenas exemplos recentes que todos conhecem.

A seguir, José António Saraiva espeta-se em cheio ao falar do orgulho gay:
"Aliás, sempre achei que o 'orgulho gay', as 'paradas gay' são um perfeito disparate. Orgulho porquê? Se, como os próprios dizem, ser homossexual é qualquer coisa independente da vontade, não se percebe que seja motivo de orgulho. Orgulho tem-se naquilo que foi obtido com o nosso esforço e o nosso trabalho. A admitir-se a parada do 'orgulho gay', teria de se aceitar uma parada do 'orgulho heterossexual' ."

A ver se nos entendemos: não é orgulho por ser quem é - é orgulho por ter a coragem imensa de assumir ser quem é e estar disposto a pagar o preço cobrado por uma sociedade ainda hostil. Não faz sentido termos uma parada do 'orgulho heterossexual' porque um homem heterossexual nunca vai ter de pensar como revelar aos pais que gosta de mulheres, nunca vai ser gozado na escola por se ter apaixonado por uma rapariga, nunca vai ser insultado com frases como "tu gostas é de [inserir aqui uma prática sexual de heterossexuais]" ou "és mesmo um gajo que gosta de mulheres!..." ou "não faças figura de heterossexual!" Um jovem heterossexual não vai ser alvo de olhares despudorados e invasivos, muitas vezes carregados de desprezo (a crónica do elevador do Chiado é um belo exemplo desse olhar despudorado). Uma mulher que gosta de homens não vai ter o pai a recriminar-se ("o que é que fiz de errado?") nem a mãe a choramingar ("não vou ter netos!"), nem os dois a dizer "aceitamos-te como és, apesar de tudo és a nossa querida filha". Uma mulher que gosta de homens não vai ser vítima de "violação de reeducação" para "aprender que sexo com homens é que é bom". Um heterossexual não vai nunca ouvir "isso cura-se, há terapias que funcionam", ou "não tens culpa nisso que te aconteceu, agora só tens de reprimir esses impulsos e viver em castidade".

O tal "orgulho gay" é um fenómeno de pessoas que passaram por muito sofrimento causado por uma sociedade que as rejeita, despreza, teme, ridiculariza e insulta. E quem lhes provoca o sofrimento são "meninos", pessoas que agem a partir de uma situação extremamente confortável de assimetria de poder. Celebrarem-se a si próprios numa marcha de orgulho seria o cúmulo do cinismo.

Alargo um pouco o desenho, talvez seja mais fácil perceber:
- [sobre perseguição e extermínio] imaginem uma parada do orgulho judaico em Berlim - alguém se lembraria de dizer que, a admitir a parada do orgulho judaico, era preciso também aceitar uma parada do orgulho cristão em Berlim?
- [sobre direitos civis] lembremos a marcha Selma-Montgomery - para podermos achar bem, devíamos querer como contrapartida uma marcha só para brancos?
- [sobre direito à identidade] imaginemos uma marcha de orgulho arménio na Turquia (pequena síntese: muitas famílias arménias na Turquia mudam o apelido e a religião para protegerem os seus filhos, e escondem deles a sua origem arménia; na escola turca ensina-se que os arménios são os inimigos da Turquia) - para aceitar tal marcha, teria de se aceitar também uma marcha do orgulho turco?

Espero que agora tenha ficado mais claro.


2 comentários:

Anónimo disse...

Brilhante! Devias ter uma coluna de respostas às crónicas do Sr. Saraiva. :) Trabalho árduo, mas darias conta do recado!

Helena Araújo disse...

Obrigada.
As respostas ao arquitecto Saraiva não são trabalho árduo. Na realidade, é um trabalho bem fácil. E não é que eu seja muito inteligente - ele é que deve estar muito distraído quando escreve.