26 junho 2015

animais

Anda por aí um vídeo horroroso, que não quero ver. Já me conheço, e não quero que estas imagens se tornem estilhaços de vidros colados dentro de mim. 

O Nuno Markl descreve o caso e condena-o sem peias: numa festa popular prende-se um gato no topo de um poste e deita-se fogo à palha que o rodeia. O divertimento consiste em observar o pânico do gato. No vídeo que anda a correr por aí, o gato acaba por saltar, e foge com o corpo em chamas, perante os risos da população.

No facebook encontrei o comentário "que animais!" e ia corrigir: animal é o gato - estes humanos são é bestas. Mas bestas também são animais. Tento emendar, procuro outras palavras: isto aqui são pessoas burras, más como as cobras, brutas que nem um boi. Grandes cabras.

Porque é que usamos epítetos de animal para insultar? Mais: quem é que se lembrou de associar a animais este comportamento de crueldade e brutalidade absolutamente gratuitas? O contrário é que é verdade: quando os animais têm comportamentos de crueldade gratuita, estão a portar-se como humanos.

Inventem-se novos insultos, que os antigos correspondem a uma mentalidade já ultrapassada, ou de cujos enganos estamos a ganhar consciência. E olhemos para as nossas palavras de insulto, para o que significam e para o preço pago pelos portadores desse nome: animal, besta, bastardo, filho da puta, maricas, cigano, judeu, preto, etc.

Já agora, olhemos com mais demora para "humano", aprendamos a ver o que há nele de trigo e de joio. O que me lembra uma história que aqui contei há anos:

Um casal, a quem nascera um filho, desentendeu-se quanto ao nome a dar à criança, e foi falar com o rabino.
- Qual é o vosso problema?, perguntou o rabino.
- A minha mulher quer dar ao nosso filho o nome do pai dela, e eu quero que ele receba o nome do meu pai, respondeu o marido.
- Qual é o nome do seu pai?
- Abia.
- E o nome do seu sogro?
- Abia.
- Então qual é o vosso problema?, perguntou o rabino, surpreendido.
- Sabe, disse a mulher, o meu pai era um doutor, enquanto que o pai do meu marido era um ladrão de cavalos. E eu não quero que o meu filho tenha o nome de um ladrão de cavalos!
Desesperado, mas incapaz de os deixar sem uma resposta, o rabino disse-lhes:
- Dêem ao vosso filho o nome Abia. Depois deixem-no crescer, começar a andar e a falar. Ouçam os seus sonhos, vejam como luta pelo seu futuro, observem como se realiza. E assim verão se ele recebeu o nome do doutor ou o do ladrão de cavalos.


***

Para minha memória futura, deixo aqui o texto do Nuno Markl:




Não é tradição, é selvajaria


O que eu sei é que um vídeo da Queima do Gato de Mourão começou a circular pelas redes sociais. E o mais incrível é que não é um video de denúncia. É uma reportagem feita, creio eu, pela organização das festas mostrando, orgulhosamente, cenas de bailarico e terminando como um filme de terror: com a população a assistir, divertida, ao momento em que, no fim de contas, um gato real, não um peluche, é aterrorizado a uma altura tremenda, quando os foliões de Mourão deitam fogo a uma quantidade de palha que envolve a árvore ou o poste em cujo topo o animal foi colocado, e depois riem e comentam o que se passa a seguir: as chamas subindo a velocidade alucinante, o gato em pânico lá no cimo, a multidão divertindo-se com a dúvida: será que ele salta? Será que ele arde?
O gato, desesperado, acaba por saltar daquela altura gigantesca – gigantesca até mesmo para os dotes de salto de um gato – e, mais terrível ainda, salta de lá e foge em chamas. E o povo ri. E celebra. Numa pesquisa que fiz no Google sobre esta tradição, encontrei um depoimento de um idiota qualquer que dizia, sobre a tradição da Queima do Gato (que, no fim de contas, parece ter largado oficialmente o boneco para regressar à tortura de um animal real): “Calma, que não acontece nada ao gato – a não ser um grande susto!”
Permitam-me discordar desta frase imbecil a vários níveis. Só um “grande susto” (colocar um animal cercado a uma altura tremenda e obrigá-lo a saltar dali para escapar a uma morte pelo fogo) já é desumano. Pura e simplesmente desumano. Não tenho dúvidas quanto a isto: uma pessoa que se regozija com a ideia de celebrar uma festa pregando “um grande susto” a um gato é uma má pessoa. Não há volta a dar-lhe. Mas é pior ainda quando o “grande susto” termina como vemos neste vídeo: com um animal inocente, que não faz ideia do que é uma “tradição”, a fugir em chamas enquanto o povo ri e aplaude e festeja. Aí já não estamos a falar de meras más pessoas. Nenhum ser humano que acha divertida uma festa que termina com um ser vivo em chamas pode ser um ser humano decente. Qualquer ser humano que acha divertida uma festa que termina com um ser vivo em chamas é, lamento dizê-lo, uma besta psicótica.
Eu não quero acreditar que há só bestas psicóticas em Mourão. De certeza que há pessoas boas e decentes que compreendem o quão errado e indesculpável é este procedimento, por isso não vou fazer generalizações.
Vou só explicar aquilo que, quanto a mim, pode significar manter esta tradição sinistra e cruel.
Num primeiro nível, significa fazer mal a um ser vivo inocente, o que é errado. Mas pronto – isso é um argumento que pega pouco em Portugal, país que tem enraizada a ideia de que os bichos ou são para comer, ou são para matar – por desporto, espectáculo ou tradição. A um nível geral, somos um país que se está pouco borrifando para os animais, por isso condenar um mau trato, apesar de ser algo que vale sempre a pena fazer, é frequentemente inútil.
Mas pensem nisto: há crianças em Mourão a crescer com a ideia, bem impressa na sua mente, de que não só é possível – como é recomendável e muito apreciado pelos adultos – torturar física e psicologicamente um animal. Para as crianças de Mourão, isto valida qualquer brutalidade que se faça nos outros 364 dias do ano. Se um gato pode ser posto em chamas naquela noite, porque diacho não pode ser posto em chamas, picado, cortado, em qualquer altura do ano? E quem diz gatos diz cães. Ou outro animal qualquer. Celebrar a Queima do Gato com um gato real é dizer às crianças: “Este grau de violência é giro”.
Crescer com a ideia arrogante de que é divertido e socialmente aceitável fazer mal aos animais é grave. Porque não é só “fazer mal aos animais” (o que já é muito). É abrir as portas para que se faça mal a tudo – incluindo a seres humanos. Perde-se rapidamente o sentido do Bem e do Mal. Basta passar os olhos por algumas biografias de assassinos psicopatas para perceber que muitos deles têm em comum o gosto infantil e juvenil pela tortura de bichos. Não estou com isto a sugerir que anos e anos de tradição da Queima do Gato fez das pessoas de Vila Flor assassinos psicopatas; mas uma coisa é certa: depositou-lhes no coração uma semente do Mal, e é mesmo aquele Mal com artigo definido e letra maiúscula.
Lamento, mas quem faz uma festa assim não tem bondade nem decência dentro de si.
O vídeo está aqui.

5 comentários:

jj.amarante disse...

Eu comecei por pensar em "bárbaros" ou em "selvagens" como qualificativo adequado. No entanto, quer um quer outro, que pretendem distinguir quem é civilizado de quem não é, por vezes são usados para qualificar os que não são da nossa tribo, sociedade, civilização.

Fiquei-me então por "cruéis", característica que se encontra com maior frequência na espécie humana do que nos outros animais.

Pode ser uma sequência mais ou menos lógica dos problemas de física amorais, se bem que nas aldeias não formalizem tanto os problemas de física, quer dizer, iam pouco à escola.

Devemos ter uma lei a proibir o mau trato dos animais, não se consegue aplicá-la? Eu bem sei que à semelhança das quotas podemos argumentar que devemos esperar que as coisas se resolvam por si nas calendas gregas, mas parece-me que este tipo de espectáculos públicos seriam fáceis de evitar pelas forças que devem zelar pelo cumprimento da lei.

jj.amarante disse...

Em compensação, fazendo google a "Hedgehog trapped in railings 'misjudged own girth'" se constata que só os seres humananos eram capazes de salvar este ouriço-cacheiro.

Helena Araújo disse...

Também cheguei a essa conclusão: mais vale adjectivar o comportamento, em vez de usar nomes de grupos ou de animais.
Não são nem cabras nem bodes nem burros nem maus como as cobras, muito menos selvagens (já tive "selvagens" a dar-me grandes lições de humildade e respeito, na selva), são pessoas cruéis, de maus fígados, inconscientes, insensíveis.

Era boa ideia mandar a polícia lá, era. Mas se calhar a população ainda deitava fogo ao polícia... ;)

Helena Araújo disse...

Sobre só seres humanos serem capazes de salvar animais: o facebook está cheio de vídeos impressionantes sobre a solidariedade de animais. Esta semana vi um coelho a lutar contra uma cobra que lhe foi atacar os filhos, uma lagarta a ajudar outra, que estava a ser comida por uma cobra, e um cão a proteger outro, que foi atropelado por um carro. Aqui:

https://www.facebook.com/jaquelinemarquesoficiall/videos/745741638821564/

(vejo este filme, e não posso deixar de pensar no da criança chinesa que foi atropelada, e sobre a qual os carros continuarma a passar, ou a cena que vem num filme do Michael Moore, de um preto (aqui é importante dizer a cor da pele) que é atropelado e fica no meio da rua sem ser socorrido.)

Lucy disse...

custa a acreditar que é mesmo verdade... sentimo-nos tãolonge do mundo que sonhamos e é triste.