07 setembro 2014

à porta da gruta do Ali Babá




Hoje foi um daqueles domingos em que começam a vender os bilhetes para concertos especiais no próximo trimestre, e lá fui eu de madrugada para a porta da gruta do Ali Babá, ansiosa por deitar a mão aos tesouros. Não estava muita gente, mas estava gente muito divertida. Era impossível concentrar-me nas leituras que levara, porque ao meu lado havia um animado grupo de velhotes que saltavam de tema em tema e riam prazenteiros ao sol. Quando me instalei com o meu banquinho (sim, entretanto tornei-me uma profissional disto), estavam a falar de neologismos chocantes ou divertidos, como "nicht kaputtbar" (em vez de indestrutível, "não kaputtável") ou "ich habe mich hoch gebückt" ("inclinei-me para cima"), e a cada nova expressão um coro de hehehe, hihihi, hahaha. Eu a tentar ler Sayat-Nova, "Je te supplie, écoute-moi, prête l'oreille, rai de mes yeux; / Mon coeur est plein de nostalgie, je me languis, rai de mes yeux; / Que t'ai-je fait pour me bouder? Je suis confus, rai de mes yeux; / Le monde s'est repu du monde, j'ai faim de toi, rai de mes yeux." e a fazer hihihi cá por dentro, num eco deles.
O tema mudou para os ciclistas berlinenses, esses insuportáveis, "uma vez assisti a um acidente ridículo, hehehe: dois ciclistas a aproximar-se um do outro, não conseguiram decidir quem se desviava do caminho do outro, chocaram e foram parar ambos ao hospital". Hihihihi, hahahaha, hehehehe, e o Sayat-Nova ainda às voltas com o seu amor triste. Depois falaram das encenações modernas, da mania da linguagem fecal que não leva a lado nenhum e da mania de despir as pessoas em palco ("e se ainda escolhessem raparigas bonitas, mas não..."), a seguir um deles revelou que já comprou a sua própria pedra tumular, e que se ri imenso quando as pessoas a vêem já pronta no cemitério, com o nome e a data do nascimento (e ria de novo, e justificava-se "sabem, gosto de histórias bizarras"). Por essa altura o Sayat-Nova já estava farto do mundo, "...on n'est jamais toujours le même, de ces chansons j'en ai assez. / Les biens d'ici sont sans valeur, il n'en demeure aucune trace; /  Homme de bien qui réussit à n'aller pas la tête basse; / Nous ne gardons rien d'ici-bas, selon le mot des hommes sages"  e eu farta de me tentar concentrar na leitura com tão pouco êxito. Fechei o livro, fiquei a ouvi-los. Contavam concertos memoráveis, e sabiam as datas de cor! O que já tem a pedra tumular adiantada contou "aquela cena inesquecível numa ópera quando o solista levanta a mão para os "assassinos" entrarem no palco, e não acontece nada, até que finalmente cai o pano, e ouve-se uma voz a gritar "primeiro de Abril!", ai, o que o público se riu" - hihihihi, hahahahaha, hehehehe. Quando lhe puserem a segunda data na pedra, estou em crer que no cantinho do cemitério que ele escolheu haverá um grande alvoroço das almas.
Na altura em que um ia falar de um concerto especial no dia 24 de Abril de 1974 (!) abriram as portas da casa, e perdi o resto da conversa. Espero encontrá-los de novo em princípios de Dezembro, pode ser que ganhe coragem para perguntar que concerto foi esse.

Daí a nada estava em animada mesa redonda, digamos assim, com a senhora da caixa, a minha lista de sonhos, e a minha carteira à beira de um ataque de nervos. Regressei a casa toda contente, com o alforge cheio de promessas:

- Andava há que tempos curiosa para ouvir a orquestra de cordas que usa exclusivamente instrumentos feitos pelo Stradivari. Tocam de dois em dois anos, e o próximo concerto vai ser a 24 de Maio de 2015. Ainda havia bilhetes! Maravilha.

- No dia 6 de Novembro faz 25 anos que vim morar para a Alemanha, e vamos celebrar no concerto comemorativo da queda do muro, com o Simon Rattle e a nona de Beethoven.

Agora tenho de estar atenta aos lugares nos bancos do coro, os únicos que não me dão cãibras à carteira. Vem aí a Argerich, vem a Grimaud (espero que traga o cabelo preso). Vai haver um ciclo Schumann + Brahms (quatro concertos, da 1ª à 4ª sinfonia de cada um deles) e um ciclo Sibelius (o concerto para violino é com o Leonidas Kavakos).
E em Dezembro começam a vender bilhetes para a segunda de Mahler, com a Magdalena Kozená e a Kate Royal, e para o deutsches Requiem do Brahms com o Gerhaher...

Precisava mesmo de arranjar um colchão debaixo de umas escadas perdidas naquela casa.

2 comentários:

Gi disse...

O que me consola é que a minha carteira não ia aguentar tantas solicitações.

Helena Araújo disse...

Gi, isso consola-te?!
Bem, a minha carteira também não aguenta. Por isso vou andar de olho nos bancos de pau. Aí, custam uns 15 ou 20 euros.
Tenho amigos americanos que nem pestanejam para pagar 100 euros por um bilhete. Dizem que nos EUA isso é uma pechincha.
Os concertos aqui são fortemente subsidiados. Por sorte, por sorte!