09 setembro 2014

16 milhões de Chicos Buarques



Postal do Brasil (e aqui deixo um conselho de amiga: espreitem regularmente este blogue):

"Sentados no chão, admirando a parede bege da lanchonette, tento introduzir o namorado francês às especificidades da língua brasileira - quem falou de português do Brasil? -  a urgência de gerundiar e a música das palavras. Começo com Jacarépagua, a moça da lanchonette, que evidentemente não tem máquina para pagamento com cartão trabalhando, vem de lá. Jacarépagua. Mandioca. Maracanã. Moqueca. Tentei-ligar-do-orelhão-mas-meu-cartão-estava-zerado.
Mas pegando numa palavra neutra, sem carnaval à mistura : boca. Experimenta dizer boca com sotaque de telenovela da Globo. Boca. São testoteronas pop ups por todo o lado, uma explosão de sensualidade que não acaba mais, uma pessoa mergulha na palavra boca e já corre o risco de fazer o terceiro filho, ali. Na hora. Agora experimenta dizer boca na língua da ex-metrópole, na linhagem directa de Camões : boca. Verdade que fica logo ali um gostinho de repartição de finanças a pairar.
Não tenho a certeza que tudo se possa importar. Existem sons que aqui ganham um novo significado. Acreditem se quiserem, mas de repente é como se houvesse 16 milhões de Chicos Buarques. Posso estar a exagerar."

***

Há uns anos largos estava a comentar com amigos que "adoro o que os brasileiros fazem com a língua", e eles "aha, conta mais!", e eu "oh, parvos!"
Agora vem a Carla explicar que sim, que isto anda tudo ligado.
Já a Sophia, na sua época, se apaixonara por este fenómeno, mas em vez de enveredar pelos ímpios caminhos da carne, ficou-se pelos da flora. Outros tempos, outros tempos.


Gosto de ouvir o português do Brasil 
Onde as palavras recuperam sua substância total 
Concretas como fruto nítidas como pássaros 
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas 
Sem perder sequer um quinto de vogal 

Quando Helena Lanari dizia o «coqueiro» 
O coqueiro ficava muito mais vegetal.


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