28 agosto 2014

como não ficar de bem com o mundo e as suas gentes?




Esta manhã soube que a Anna Netrebko vai cantar as últimas quatro canções de Strauss no próximo domingo. Fui logo procurar o milagre de um bilhete a preços para pelintras como eu, mas tive azar: é um concerto de beneficência, os mais baratos começam pelos 150 euros.
Ora bem: o que não tem remédio remediado está, e além disso quando se fecha uma porta abre-se uma janela, pelo que não vale a pena chorar sobre leite derramado. Tratei de investir noutro sonho, e fui cedinho para a fila da Filarmonia ver se arranjava bilhetes nos bancos de pau para o primeiro concerto da temporada, com o Simon Rattle, Rachmaninov e Stravinsky.
Quando abriram as bilheteiras, pedi aos simpáticos americanos atrás de mim que guardassem o meu lugar, e fui espreitar nos concertos de orquestras convidadas se haveria algum bilhetinho a bom preço para o Dudamel e o Barenboim, na abertura da Festa da Música deste ano. O senhor da bilheteira bem procurou, mas não tinha nada. Disse-me que telefonasse directamente à organização, e depois acrescentou: "mas para si tenho lugares a pé para o concerto da Anna Netrebko. Quantos quer?"
Nem queria acreditar: vivo no meio de três milhões e meio de berlinenses, mais um milhão de turistas por mês, e o vendedor daquela bilheteira lembra-se de mim e sabe adivinhar os meus desejos?!

Voltei toda contente para os simpáticos americanos. Contei-lhes do concerto, mas eles não acham muita graça à Netrebko, e ficámos por ali a falar dos nossos cantores preferidos, até que chegou a minha vez e consegui dois lugares para o concerto do Simon Rattle. Os mais baratos, que no caso são os melhores de todos: de frente para o maestro. Perguntei se seria possível comprar mais dois, para um casal amigo, a senhora olhou para a fila atrás de mim (não havia muita gente), contou os bilhetes, e disse que sim, que excepcionalmente seria possível vender-me mais que os dois do regulamento.

Saí da filarmonia, disse "então até sábado" aos americanos, e atravessei a rua para ir resolver um problema bicudo na Staatsbibliothek. Quando andámos a filmar lá, em Abril, entrámos na biblioteca antes da hora de abrir. Tínhamos uma hora, das oito às nove, para fazer tudo. Tempo para nada, claro. Fui ao meu depósito buscar os livros de que precisava para filmar, mas não tinha ninguém ali para registar a saída. Em desespero de causa, agarrei nos livros e levei-os assim mesmo. No fim das filmagens fui devolvê-los e explicar o que tinha feito, e a funcionária ficou desconcertada. Que não podia ter feito, que não podia tirar sem registar a saída, que não podia ser de modo algum. Tentei argumentar, mas ela mostrou-se inflexível. No fundo, tinha razão - pelo que pedi imensa desculpa, reconheci que tinha agido mal, e garanti que nunca mais repetiria o erro.
Passados uns dias fiquei a saber que estava proibida de entrar naquela biblioteca. Que vexame!
Tentei falar com o chefe, mas estava de férias.
E era isso que ia fazer hoje: falar com o chefe daquela secção, para tentar resolver o problema. Ia disposta a humilhar-me como um japonês dos antigos, postrar-me aos pés dele e pedir o harakiri, pelo menos - mas o chefe estava outra vez de férias. Veio uma substituta, que leu o que estava escrito no meu cadastro no computador, e disse à senhora da recepção que o melhor era apagar tudo e levantar a proibição. Então, e o meu harakiri? Perguntei-lhe se não me dava um raspanete nem nada, expliquei que não tinha agido com más intenções, e ela sorriu e disse "com certeza que não!" e pronto, vim-me embora de cabeça levantada.

Além disso hoje foi verão em Berlim. Como não ficar de bem com o mundo e as suas gentes?
(mas depois ouvi o noticiário da noite, e...)


4 comentários:

Lucy disse...

Fiquei a pensar como seria útil ao mundo espalhar estas tuas "parábolas"(?) aos quatro ventos e lembrei-me que devias fazer um livro daqueles (geralmente péssimos)de auto-ajuda com os teus exemplos todos reunidos...Sucesso garantido.

Helena Araújo disse...

Parábolas, Lucy?
Fico sempre espantada com o que as pessoas encontram nas peripécias que me acontecem.
Vou pensar no livro. Dava-me jeito que fosse sucesso garantido, para ajudar a Humanidade e também porque tenho aqui umas contitas para pagar. ;-)

Lucy disse...

pronto, parábolas talvez não, mas pequenos contos exemplares, pode ser?

Helena Araújo disse...

Instântaneos da alegria, talvez?