16 maio 2014

TTIP - por favor, digam-me que isto é mentira!



Esta semana recebi uma mensagem de um amigo, alertando para o problema do acordo de livre comércio entre os EUA e a UE, também conhecido por TTIP. O meu filho já tinha falado disto - de facto, já me tinha mostrado uma discussão interessantíssima que tinha tido com amigos no facebook (um dia destes traduzo, só porque fiquei impressionada com miúdos de 17 anos a discutir a questão de mais ou menos Estado citando bibliografia - no facebook!) - e resumiu tudo com a frase "se não quisermos ter no nosso mercado frangos de cloro, vamos ter de indemnizar as empresas americanas que os vendem".
Também já tinha lido por aí umas coisas, mas a mensagem que recebi esta semana é assustadora.
Porque é que assunto não está a ocupar as primeiras páginas dos jornais?

Passo a traduzir a mensagem que recebi:



O cerne da questão: este acordo inclui uma cláusula de protecção dos investimentos. Parece algo inócuo, mas de facto é inacreditável. Vejamos alguns exemplos reais: 

Exemplo 1: O governo do Uruguai emite leis antitabagistas mais rigorosas. Com base na cláusula do acordo que protege os investimentos, a empresa Philip Morris está a processar o Estado, devido aos lucros que perde. O valor em causa atinge 14% do PIB do Uruguai. 

Exemplo 2: Devido a preocupações ambientais, a província canadiana Quebec decide não autorizar o fracking. A empresa americana Lone Pine processa o Estado canadiano em 250 milhões de dólares, devido à quebra de lucros esperados, com base no NAFTA de 1994 (acordo de livre comércio entre o México, o EUA e o Canadá).  

Exemplo 3: A Alemanha decide abandonar a energia nuclear. O grupo Vattenfall processa o Estado em 3,5 mil milhões de euros (para comparação: a cidade de Lübeck não tem dinheiro para consertar os telhados das suas escolas primárias), com base na "Carta Energética Europeia".

Todos estes processos decorrem em tribunais internacionais de arbitragem. Tanto quanto sei, só há um número limitado de consultórios de advocacia (cerca de 30) capazes de participar nestes processos. Umas vezes estão do lado da acusação, outras do lado da defesa, outras na cadeira do juiz. O pagamento do seu trabalho é principesco. Ainda não consegui entender como é que estes tribunais são formados. Os processos decorrem à porta fechada, as decisões são vinculativas, não há possibilidade de revisão. Os tribunais de arbitragem são instituições que se posicionam acima das nossas Constituições e dos nossos tribunais. Infelizmente, tenho de reconhecer que só agora, no âmbito do TTIP (ou seja: também tenho estado a dormir) me dei conta de que já há um extraordinário número de acordos bilaterais de protecção do investimento firmados secretamente entre a Alemanha e outros países - secretamente, porque a opinião pública nunca os autorizaria. Neste momento corremos o risco de, com base no TTIP, firmar um acordo destes, com um enorme alcance e de forma praticamente irreversível.
Em minha opinião, os eleitores que não estiverem agora atentos tomam para si a culpa do que vier a acontecer. Estamos perante um instrumento que os grandes grupos vão poder utilizar para manipular os políticos dos Estados afectados, tendo em conta o valor descomunal das indemnizações que podem ser obrigados a pagar. Os interesses dos cidadãos passarão de forma muito clara para segundo plano - e isto irrita-me de tal modo, que decidi tomar a iniciativa de alertar publicamente para este problema.


Pontos adicionais: este não é o único risco do TTIP. Grupos de protecção do ambiente e dos consumidores temem que em muitos casos os níveis standard de protecção possam descer. É possível que a UE passe a aceitar alimentos geneticamente manipulados, carne tratada com hormonas, e fracking - por exemplo. O tratado permite facilitar às grandes empresas a realização de lucros na área da distribuição de água, da saúde e da educação, à custa da população. As privatizações devem ser facilitadas (para mais informações, ver aqui, em alemão)    
O TTIP é praticamente irreversível: uma vez assinados, não poderão ser alterados pelos políticos eleitos. Cada alteração tem de ser aprovada por todas as partes envolvidas. A Alemanha não pode abandonar este tratado, porque quem assina é a União Europeia.
Por este motivo, apelo a todos vocês para que aproveitem as eleições europeias para mudar a direcção. Os partidos já disseram mais ou menos qual é a sua posição, e o CAMPACT fez uma síntese, na qual se vê quais são os partidos alemães que recusam liminarmente o TTIP (Verdes, Linke, Piratas, Freie Wähler). 



E agora, cá para nós, portugueses:

Isto não é verdade, pois não?
Se é verdade, porque é que ninguém fala disso?
E vocês, cada um de vocês - no próximo domingo vai votar, ou vai aproveitar o bom tempo para ir à praia, dizendo que "eles são todos iguais, o meu voto não atrasa nem adianta"?


22 comentários:

a.i. disse...

Ainda não vi nada legislado sonre isso. E eu vejo a legislação comunitária diariamente, inclusive os Acordos internacionais firmados pela UE que vinculem os Estados.

em PT chama-se Parceria de Comércio e Investimento Transatlântica, conhecida como TTIP
http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/questions-and-answers/index_pt.htm

FAQS:
Terá a TTIP automaticamente primado sobre a legislação da UE?
Não, a TTIP não irá automaticamente anular, revogar ou alterar as leis e a regulamentação da UE. Quaisquer alterações à legislação, regras ou regulamentações da UE com o objetivo de liberalizar o comércio terão de ser aprovadas pelos seus Estados-Membros no âmbito do Conselho e pelo Parlamento Europeu.

Quanto a:
"Os tribunais de arbitragem são instituições que se posicionam acima das nossas Constituições e dos nossos tribunais."

Nesse domínio existe a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL)
FAS
http://www.uncitral.org/uncitral/en/about/work_faq.html
Does participation in UNCITRAL diminish state sovereignty?
No. State participation in UNCITRAL, either as an elected member State of the Commission or as an observer State is entirely voluntary. By customary practice, all decisions of the Commission, including its work programme, the progress of designated projects, and the adoption of texts, are made by consensus. The choice of whether to use an UNCITRAL legislative text is a matter for the lawmakers of individual States.

Constituição da república Portuguesa

Artigo 8.º

(Direito internacional)

As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Helena Araújo disse...

a.i.,
significa então que se os Estados Membros aceitarem o TTIP, ficam sujeitos às suas condições - nomeadamente à cláusula da protecção ao investimento.

Não entendi a parte do UNCITRAL (é que não entendi mesmo nada!).
Quanto à Constituição, se bem entendi, é assim: se Portugal aprovar o tratado europeu, fica sujeito a essas regras. Eventualmente o TC terá de decidir se elas respeitam ou não os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Se disser que sim, os cidadãos pagarão com os seus impostos o direito de dizer que não a grupos internacionais com interesses em Portugal. É isto, não é?

mar disse...

Acho que a única coisa que li na imprensa portuguesa generalista sobre o TTIP foi um artigo de "opinião" do secretário de Estado para os Assuntos Europeus no jornal Público. (Na verdade, era só uma reprodução das vantagens enunciadas nos sites da Comissão Europeia e do Governo.)

Talvez se deva a alguma falta de atenção da minha parte, mas também não ouvi nada sobre o TTIP na pré-campanha eleitoral por parte de quem espera estar sentado no parlamento europeu quando a aprovação do mesmo for a votos.

Helena Araújo disse...

Mar, no facebook disseram-me que só o Livre é que está a falar disto.

a.i. disse...

Helena, a parte da UNCITRAL era em relação à consideração na mensagem do teu amigo sobre "Os tribunais de arbitragem são instituições que se posicionam acima das nossas Constituições e dos nossos tribunais."
Não é propriamente a minha área de especialidade, mas diria que essa é uma afirmação que está pouco fundamentada (mas posso verificar com mais certeza).


O que a mar disse faz sentido: achas mesmo que nas campanhas eleitorais há espaço ou tempo de antena para falar de esquisitices tão específicas como esta?
Eu diria que nem os partidos nem os candidatos na maioria dos casos estão alerta ou conhecem esse tipo de questões.

Encontro notícias brasileiras:
http://isape.wordpress.com/tag/parceria-transatlantica-de-investimento-e-comercio-ttip/

http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,merkel-defende-parceria-comercial-entre-ue-e-eua,1128156,0.htm

a.i. disse...

só acrescentar que eu não na verdade não sou especialista em nada, apenas me suscitam curiosidade este tipo de afirmações categóricas e por isso tento perceber se são realmente justificadas

Helena Araújo disse...

a.i.,
Essa parte dos tribunais de arbitragem, agradecia mesmo se pudesses confirmar. É que me parece gravíssimo. E pelos exemplos dados, parece que é o que acontece. A Vattenfall, por exemplo, está no ICSID a pedir milhares de milhões ao Estado alemão, baseada na tal Carta Energética. E o ICSID parece ser mesmo aquilo que foi descrito na mensagem que traduzi:
https://icsid.worldbank.org/ICSID/ICSID/AboutICSID_Home.jsp

Achas isto uma esquisitice? Pelo modo como põem aqui as coisas, isto significa que vamos abrir mão de algo que é importantíssimo na Europa: o direito de recusar às empresas comportamentos predatórios para a Natureza e a saúde dos consumidores. E se os partidos e os candidatos não estão alerta para isto, parece-me que deviam abrir os olhos, e rapidamente.



a.i. disse...

sim, fiquei curiosa com essa da supremacia dos tribunais arbitrais (escolhidos pelas partes) sobre os tribunais nacionais. A arbitragem voluntária é algo que está previsto, ou seja, em qualquer acordo particular pode ser aposta uma cláusula de resolução do conflito por árbitros, em vez de tribunal, desde que seja sobre matérias que a lei permita haver desaforamento (ou seja, haverá matérias que nunca podem ser excluídas dos tribunais "normais" mesmo por vontade das partes - tais cláusulas seriam ilegais).

mas como disse, não tenho conhecimentos específicos sobre arbitragem prevista em tratados, ou melhor, neste caso, em acordos bilaterais (UE-EUA). Terei de investigar. Ou pode ser que tenhas sorte e apareça aqui um comentador ou comentadora mais esclarecido que eu.

Helena Araújo disse...

Não dá para acreditar, não é? Mas eu fui ao calhas pelo google, ver "Vattenfall + Ausstieg + Gericht" e deu-me logo preto no branco: o caso está mesmo num tribunal de arbitragem, e são milhares de milhões.

Quer-me parecer que ninguém sabe muito sobre isto, e vamos é ser todos comidos por parvos.

a.i. disse...

não duvido que haja casos já em processo de arbitragem. O que me fez levantar as antenas foi a questão de supostamente esse tipo clásula de arbitragem (do que entendi, o acordo que originou esses casos já em tribunal arbitral é o do mercosul) se sobrepor tout court e não ser passível de recurso. Faz-me espécie, isso, caso se trate de questões protegidas pela Constituição. Mas não sei bem, para mim não é líquido.

Helena Araújo disse...

Obrigada por estares aqui a queimar neurónios comigo!
Imagino que a Constituição será chamada no momento da aprovação do tratado. Mas, uma vez assinado o tratado, passa a vincular o país - ou não? Quer dizer: o TC não pode vir vinte anos mais tarde dizer que o tratado assinado em 1994 afinal é anti-constitucional (não é?)

a.i. disse...

Sim, desde que "regularmente ratificadas ou aprovadas" (Art. 8/2 da CPR)
Não tenho aqui agora nenhuma CRP anotada...mas diria que a AR ou o PR não podem assinar acordos internacionais que sejam contrários a princípios comumente aceites, como será o caso de princípios básicos de direito internacional comum (tipo direito à vida, direitos fundamentais reconhecidos no Direito internacional ) porque isso seria ir de encontro o próprio Art. 8/1 da CRP..."As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.")

Helena Araújo disse...

Pois, mas o que aqui tens é uma coisa diferente. Vou falar do exemplo alemão, que é o que conheço melhor: em algum momento decidiu-se fazer um acordo internacional sobre energia, e as empresas orientaram-se por ele. Por causa de Fukushima, a Angela Merkel decidiu parar com a energia nuclear muito antes do que estava previsto. A Vattenfall diz que perdeu dinheiro, e portanto vai exigi-lo à Alemanha.
Achas que vão conseguir provar que aquele acordo é anticonstitucional? Não me parece.
(Já deu para ver que não percebo nada deste assunto?)

a.i. disse...

não, não, tu tens montes de bom senso e capacidade de raciocínio e análise!

Isso que estás a dizer terá a ver com as expectativas geradas por esse acordo. Ou seja, em todos os contratos as partes, em boa fé, têm determinadas expectativas que são protegidas juridicamente. As empresas actuaram no mercado ao abrigo dessas expectativas geradas por esse acordo. Daí que o recuo da merkel em relação ao nuclear esteja a violar as expectativas das empresas do sector.

susskind disse...


É verdade, é gravíssimo e está a ser negociado no maior dos segredos.

Dois artigos com informação sobre as negociações e as posições dos candidatos à presidência da comissão europeia (socialistas, liberais e conservadores são a favor; verdes e esquerda são contra)

http://www.spiegel.de/international/business/criticism-grows-over-investor-protections-in-transatlantic-trade-deal-a-945107.html

http://www.mediapart.fr/journal/international/110514/accord-de-libre-echange-avec-les-etats-unis-les-engagements-du-futur-president-de-la-commission

susskind disse...


É verdade, é gravíssimo e está a ser negociado no maior dos segredos.

Dois artigos com informação sobre as negociações e as posições dos candidatos à presidência da comissão europeia (socialistas, liberais e conservadores são a favor; verdes e esquerda são contra)

http://www.spiegel.de/international/business/criticism-grows-over-investor-protections-in-transatlantic-trade-deal-a-945107.html

http://www.mediapart.fr/journal/international/110514/accord-de-libre-echange-avec-les-etats-unis-les-engagements-du-futur-president-de-la-commission

susskind disse...

É verdade, é grave, está a ser negociado no maior dos segredos.

Aqui estão dois artigos que tinha à mão:

http://www.spiegel.de/international/business/criticism-grows-over-investor-protections-in-transatlantic-trade-deal-a-945107.html

http://www.mediapart.fr/journal/international/110514/accord-de-libre-echange-avec-les-etats-unis-les-engagements-du-futur-president-de-la-commission

Os candidatos à presidência da comisão europeia já se pronunciaram
a favor (socialistas, conservadores e liberais) ou contra (verdes, esquerda).

Ricardo Alves disse...

O LIVRE refere este assunto no programa eleitoral para as Europeias.

http://livrept.net/europeias-2014/programa

(É o ponto 2.2).

Gi disse...

Julgo que, à nossa escala, há vários contratos do género, como as famosas PPP que personalidades e partidos reclamam poder denunciar, mas quando chegam à posição em que poderiam fazê-lo descobrem que as condições em que foram feitos não o permitem legalmente, e por isso estamos a pagar as tais "rendas excessivas" à EDP, às empresas que exploram certas auto-estradas e por aí adiante.
É assim, não é?
Obviamente à escala da UE e dos EU e de empresas globais ainda deve ser mais grave.

a.i. disse...

Gi, em relação a essas cláusulas das PPP eventualmente o que poderia acontecer era serem consideradas abusivas ou serem anuladas por alteração das circunstâncias, como já aconteceu cá em relação aos também famosos Swaps
http://www.esquerda.net/artigo/supremo-tribunal-de-justi%C3%A7a-declara-nulo-contrato-swap/29967
Já se vão vendo decisões inovadoras, ainda em relação aos swaps, houve um outro que avançou a tese de que se tratava de aposta
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1924eb920a2ece4880257b6c004d22a7?OpenDocument

O que quero dizer com estes exemplos é que pode ser que ainda venhamos a ver essas PPP anuladas em tribunal.

Agora, quanto à tal TTIP de que a Helena falou, é realmente diferente porque os litígios são resolvidos com recurso a arbitragem. Mas mesmo na arbitragem há regras de prudência a seguir, mas claro que depende da perícia do caso que os advogados de cada lado consigam construir.

Anónimo disse...

Uma das razões que pode explicar a falta de debate sobre o TTIP, é que este tem sido um acordo, que à semelhança do ACTA, tem sido negociado em segredo.
O que se vai sabendo vem de leaks daqui e dali.
O Glyn Moody tem feito uma cobertura sobre este tema bastante exaustiva:
https://plus.google.com/+glynmoody/posts

Anónimo disse...

Se me permite, deixo aqui um link mais directo para info sobre o tratado:

https://plus.google.com/explore/TTIP