09 maio 2014

relíquias

No museu da Sé de Etchmiadzin há, entre muitos outros objectos belíssimos e de grande valor, quatro fragmentos da cruz de Cristo, um pedaço da arca da Noé, e a autêntica lança (parece que é a mais autêntica das quatro conhecidas) do soldado romano que trespassou o corpo de Jesus.

Dizem que a literatura nos muda, e eu diria que às vezes até nos muda para pior. Desde que li A Relíquia, do Eça, nunca mais consigo ver estas peças no museu sem me lembrar do Teodorico a viver numa pensão barata, vendendo garrafinhas de água do Tejo ao preço da do Jordão.

Reincidente, reli-o há pouco tempo:

Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas com listas e preços de relíquias. Mandei propostas de ossos de mártires a igrejas de província. Paguei copinhos de aguardente a sacristães, para que eles segredassem a velhas com achaques: "Pra coisas de santidade não há como o sr. dr. Raposo, que vem fresquinho de Jerusalém!..." E bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a água do Jordão, em frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chamas: vendi desta água para baptizados, para comidas, para banhos; e durante um momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e límpido que o da Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente num quarto da Pomba de Ouro. Imaginativo, introduzi "novidades" rendosas e poéticas: lancei no comércio com eficácia "o pedacinho da bilha com que Nossa Senhora ia à fonte": fui eu que acreditei na piedade nacional "uma das ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Família". 

Um corrosivo, o Eça. Estragou-me - pelo que tive de me esforçar bastante para ver naquelas peças não a banalidade da matéria, mas o significado que o povo arménio lhes atribui. E consegui, e não apenas no museu das relíquias. Numa igreja recentemente construída, em Yerevan, descobri na sujidade da parede à volta de uma cruz arménia as marcas das dores, das esperanças, dos anseios e da fé de um povo - sinais das inúmeras pessoas que ali passaram e tocaram levemente a parede como quem procura uma ponte para o sobrenatural.



O Museu da Sé, em Etchmiadzin, está cheio de pontes para o sobrenatural. Mostraremos algumas delas no filme:

- Este pote de água benta, por exemplo, que tem um papel muito importante para os arménios da Diáspora:


- O fragmento da arca de Noé, um pedaço bonito de madeira petrificada, lindamente emoldurado em ouro. Conta o mito que os arménios são os descendentes de Noé, cuja arca pousou no monte Ararat. Muitos anos mais tarde, no séc. IV, enviaram um monge ao topo da montanha de 5000 metros, para procurar vestígios da arca. Ele bem se esforçava: subia o monte, ao fim do dia adormecia cansado, e durante o sono um anjo trazia-o de volta ao sopé. Ele recomeçava a subida, para acordar novamente no ponto de partida. Até que um dia o anjo se condoeu do esforço deste Sísifo, e lhe ofereceu um fragmento da arca.


 (fonte)

Falta-lhe agora um bocado, na parte de baixo à esquerda, que foi oferecido a um czar. Que terrível dependência obrigou os arménios a mutilar este pilar simbólico da identidade nacional, para oferecer uma parte ao poderoso país vizinho?

- A lança que trespassou Cristo (posteriormente fizeram-lhe aquela cruz no meio) (será que os pedacinhos que saíram dali estão noutro museu qualquer, "fragmento da lança que trespassou Cristo"?):


- Um pouco da cruz de Cristo (uma fracção minúscula, no medalhão de vidro no centro desta cruz):




Uma das peças do museu que mais me interessou, pela profusão de histórias que conta e pelo detalhe de mistura de culturas que os portugueses também conhecem, é esta casula mandada fazer em 1817 por uma comunidade arménia da diáspora na China:




Vê-se a Sé de Etchmiadzin, tendo Nossa Senhora e o Menino Jesus no seu centro.
A Sé está pousada sobre a Arca de Noé,


e no canto inferior direito vê-se o pobre do monge que foi em busca do pedaço da arca. A dormir, claro:



O mais curioso é que os artesãos chineses desenharam os rostos com traços típicos chineses. 
Por não saberem fazer melhor? Por se terem convertido ao cristianismo e decidirem que Jesus não era um europeu loiro, mas um chinês? Para se vingarem das chinoiseries que por essa altura se construíam na Europa?


Gosto deste São Lucas a lembrar um filósofo chinês. Como seria o seu Evangelho, se tivesse sido escrito na China?



2 comentários:

Paulo disse...

Existem várias Nossas Senhoras chinesas, japonesas, goesas, etc. Do mesmo modo que os europeus a fizeram loirinha. Uma forma de a tornar mais próxima dos crentes.

(Encantado a ler tudo o que está aí para trás.)

Helena Araújo disse...

Ou talvez os artistas só saibam reproduzir aquilo que conhecem. Um bocado como as chinoiseries europeias, que tinha "chineses" muito ocidentais. Eles sabiam lá como eram os chineses, os seus cabelos, os seus penteados, as suas roupas, os seus instrumentos musicais...