02 fevereiro 2014

Kraft - Magnus Lindberg

Recomendaram-me muito o programa que por estes dias andava na Filarmonia, e recomendaram tanto ("com o Magnus Lindberg, instrumentos completamente loucos, e os solistas são muito bonitinhos" - ora, quem pode resistir a tal fervor pela arte e pela cultura?) que ontem fui espreitar: Alan Gilbert, os filarmónicos do costume, o concerto para violoncelo de Dvořák e a peça Kraft, de e com Magnus Lindberg.

O concerto para violoncelo foi uma beleza. E ter Emmanuel Pahud no diálogo da flauta com o violoncelo foi sublime.


 

O intervalo demorou imenso tempo. O elevador de pianos teve de subir várias vezes ao palco, com uma tralha que não acabava mais: vasos de cerâmica, baldes, ferro-velho sem fim. O compositor Magnus Lindberg estava no palco a pôr ordem naquele caos de tralha, e a conversar, muito sorridente, com os técnicos e os músicos - enquanto o público apreciava toda aquela balbúrdia, entre o céptico e o divertido.


Finalmente os músicos regressaram ao palco, e o maestro Alan Gilbert fez uma pequena introdução a "Kraft", afirmando que já era mais que tempo de apresentar aquela peça naquela casa e com aquela orquestra. Afinal de contas, tinha sido composta 30 anos antes em Berlim, e é atravessada pela força dessa cidade. Traduzo as palavras de Lindberg a partir do programa do concerto: "No inverno de 1984/1985 estava em Berlim, e vivia na casa da Nina Hagen, no Kurfürstendamm. A Nina não estava lá, mas talvez eu tenha absorvido algo daquele lugar. Trabalhava muitas vezes de noite, e para me distrair ia depois da meia-noite para bares punk e bares nocturnos daquela área. Era confrontado com um cenário musical perturbador, de algum modo brutal, mas simultaneamente poderoso e fascinante. Nesses clubes costumavam aparecer os "Casas Novas em Derrocada", nome que dá uma ideia de como essa banda tocava. O ruído metálico, que é uma parte importante no arsenal sonoro em Kraft, a minha peça para orquestra, desempenha o mesmo papel que os restos estrondosos da sociedade industrial têm na música dessa banda punk alemã. Naturalmente há que acrescentar que, à parte isso, Kraft nada tem a ver com a música Rock."





 

Kraft é mais ou menos assim: começa com um ruído ensurdecedor, depois ora diminui ora aumenta, e termina com um ruído ensurdecedor. Pelo meio os músicos correm para vários pontos da sala (memorável o momento em que tive Emmanuel Pahud ao meu lado, a tocar flauta como se fosse um afiador de facas), os solistas tocam os instrumentos mais estranhos (inesquecível o momento em que começaram a soprar ar por um tubo para o fundo dos baldes de água) (foi quando eu me esqueci que estava na Filarmonia, e soltei uma enorme gargalhada), e os músicos da orquestra fazem caras hilariantes - uns tapam os ouvidos, outros põem tampões nos ouvidos, muitos lembram-me os famosos soldados do Astérix ("alistem-se no exército, vão ter uma vidinha descansada..., diziam eles"). O Magnus Lindberg, olhava em intervalos rápidos ora para a sua pauta ora para o maestro, como se não conhecesse a sua música e fosse muito complicado dar marretadas monumentais num gongo desmesurado.

Contaram-me que nos blocos mais caros muita gente se sentiu desconfortável, e só não saiu da sala para não dar vexame. No meu, de bilhetes a preços mais acessíveis, as pessoas pareciam contentes: chegavam-se para a frente para ver o mais possível, trocavam olhares de riso, estavam agarrados àquela música como se fosse à corrente eléctrica.

Raramente vi caras tão alegres e descontraídas no fim de um concerto na Filarmonia.

Depois ainda fomos beber uma cervejinha e continuar a rir. Infelizmente não estava por lá o solista do clarinete, o Andreas Ottensamer, e talvez fosse melhor assim. Mas estava o português Ricardo Silva, trompista da Orchester Academy.

Para encerrar a noite, e as discussões, concluímos que o Alan Gilbert bem podia ocupar o lugar do Simon Rattle, quando este se for embora. Não sabemos se a New York Philharmonic estará de acordo, porque, lá está: tem de haver sempre um desmancha-prazeres para dar cabo das ideias geniais.

4 comentários:

Paulo disse...

Enganaste-te no título. Se querias fazer aqui de Correio da Manhã, tinhas de chamar a isto "Tive Emmanuel Pahud ao meu lado". Parece que se usa agora muito os instrumentistas mudarem de lugar durante os concertos.

O Ottensamer... pois, que pena.

E como está o Ricardo Silva a dar-se por aí?

Paulo disse...

E quem era o violoncelista? - pergunto eu enquanto ouvejo "Kraft", não muito fascinado, confesso.

Helena Araújo disse...

Pois é, não tenho jeito nenhum para títulos que vendem! A ver se da próxima vez me esmero um pouco mais.
"Emmanuel Pahud como afiador de facas" também não era nada mau.

O Ricardo Silva parece óptimo. Gosta de Berlim, tem tido muito trabalho e está-lhe a correr bem. A ver vamos se entra para os filarmónicos - isso é que era!

O violoncelista era para ser Truls Mørk, mas foi substituído por Daniel Müller-Schott. Não fiquei incondicionalmente rendida. Tinha uma óptima técnica, mas não conseguiu falar aos meus os nervos mais sensíveis.

Paulo disse...

Obrigado pela pronta resposta.