07 fevereiro 2014

Kaminer sobre a Rússia e os jogos olímpicos de Inverno



Entrevista de Wladmir Kaminer ao Tagesschau, o noticiário da ARD (e traduzida pelo irmão mais novo do Speedy Gonzalez: rááápido, rááápido e recorrendo à liberdade criativa para colmatar a falta de tempo)



Wladimir Kaminer sobre os jogos em Sochi

"Participar e reclamar"

Jogos de Inverno numa região de clima subtropical - tinha mesmo de ser? O escritor Wladimir Kaminer não é tão crítico: "O dinheiro já está gasto, por isso o melhor é aproveitar." E o interesse da comunidade internacional ajuda a Rússia a avançar.

tagesschau.de: Os jogos em Sochi estão a começar, e há notícias de que os hotéis ainda não estão prontos. A região de montanhas Krasnaja Poljana parece um estaleiro. Isto surpreende-o?

Wladimir Kaminer: Oh, será que me escapou alguma notícia importante? Os media russos não informaram sobre isso.

tagesschau.de: ...o que não me surpreende.

Kaminer: Essas notícias correm porque o mundo está a olhar para Sochi com uma atenção que nunca dedicou antes aos Jogos de Inverno. Já é preciso ter alguma boa vontade quando se olha para estes jogos. Se à partida se tem uma atitude crítica, vai-se encontrar sempre alguma coisa para criticar. Penso que os anfitriões fizeram tudo para mostrar ao mundo a sua hospitalidade.

tagesschau.de: Sente esta crítica como maledicência?

Kaminer: A crítica é muito importante! É mesmo disso que a Rússia precisa. O que me parece errado são os boicotes. Por exemplo, quando o presidente da República alemã vira as costas aos Jogos. Isto é ingénuo e infantil. Justamente neste nosso tempo, quando o mundo se tornou uma pequena esfera, quando tudo está ligado a tudo, não se pode ignorar um país com a dimensão da Rússia. Pelo contrário: é preciso ir lá, e reclamar. Reclamar, por exemplo, sobre os hotéis que ainda não estão prontos. A propósito: quem fez os hotéis foram os austríacos...

tagesschau.de: ...pelo menos, a Áustria recebeu contratos no valor de vários milhares de milhões.

Kaminer: Houve com certeza muitas empresas de construção estrangeiras no terreno, caso contrário não teríamos um único hotel pronto. Na Rússia, a corrupção devora tudo. São os estrangeiros quem consegue resultados. São eles quem diz "aqui no plano está previsto um parque de estacionamento para deficientes. Tem de ser feito." O Putin vai buscar as empresas internacionais, também porque elas conseguem lutar contra a corrupção a partir das bases. Ele sozinho, a partir de cima, não consegue.

tagesschau.de: E contudo: Jogos de Inverno numa estância balnear, os jogos mais caros de sempre, atentados graves ao meio ambiente: era preciso tudo isto?

Kaminer: Com certeza que esta decisão não foi razoável. Mas também é devido ao facto de na Rússia ser tudo decidido por uma única cabeça. E o Putin procura desafios. Naturalmente, era muito mais fácil fazer estes jogos na Sibéria. Em 3/4 do território russo há neve durante nove meses por ano. Mas isso não era uma tarefa à altura deste presidente "eterno". Antes dele, ninguém se lembrou de fazer Jogos de Inverno numa estância balnear.

tagesschau.de: Não é de opinião que o dinheiro podia ser aplicado noutros objectivos com mais proveito?

Kaminer: Claro que não havia necessidade de enterrar aqui o dinheiro das reformas. Mas agora o dinheiro já está gasto, e não vai ser recuperado. O melhor é aproveitar esta festa e divertir-se com ela. E tenho a certeza que vai ser um enorme sucesso.

tagesschau.de: Um sucesso, em que medida?

Kaminer: Não me refiro tanto ao sucesso desportivo. Putin escolheu Sochi também devido aos antigos complexos de inferioridade de que o país ainda sofre. Mesmo vinte anos após a derrocada do império soviético, a Rússia ainda se sente isolada do resto do mundo. Por isso é que Putin procura atrair ao seu país o maior número possível de projectos internacionais. O objectivo é reintegrar o país na comunidade internacional. E então a comunidade internacional vem e diz "os hotéis ainda não estão prontos".
 
tagesschau.de: O que é que estes Jogos vão trazer ao povo russo?

Kaminer: Estes Jogos revelaram muitas das feridas da Rússia moderna. O interesse internacional deu origem a debates muito abertos. Muito do que até agora acontecia em segredo foi trazido à luz do dia. Estes Jogos de Inverno, com todas as suas críticas, vão conduzir a uma liberalização do sistema. Espero que tragam à Rússia muitas pessoas, e que entrem em contacto com a população. Só esse facto já faz avançar o país. E ajuda os russos a deixarem de se ver como excluídos e como o resultado de uma experiência socialista falhada, mas como pessoas normais.
   
tagesschau.de: A família da sua mulher mora perto de Sochi, no Cáucaso Norte. Que consequências é que os jogos têm para a vida dos seus familiares?

Kaminer: Os nossos parentes nessa região são os grandes perdedores. A alegria e a festa não chegam até eles, mas têm todos os transtornos das medidas de segurança. Em cada esquina há polícias que controlam cada carro cinco vezes por dia. Já quase parece Hamburgo. Em todo o caso, isso faz do Cáucaso Norte o lugar mais seguro da Terra, por estes dias. Não me lembro de ter havido tantas forças de segurança reunidas num só lugar. Espero que não lhes dê um assomo de loucura, e não desatem a disparar uns contra os outros.

tagesschau.de: Um documentário na TV chamou a Putin "Pai dos Jogos de Inverno de Sochi". Os russos apreciam isto?

Kaminer: Conheço muitas pessoas que votam nele, mas não conheço ninguém que goste dele. Os russos não escolheram Putin. Desde sempre é no Kremlin que se decide quem detêm o poder sobre o país. Para os russos, são todos gatunos, seja quem for que está lá. E não querem mudar de gatuno de quatro em quatro anos. Não há necessidade de multiplicar o mal. As pessoas não gostam de Putin, mas conhecem-no. E preferem isso ao desconhecido. Não é como com os americanos, que parecem obcecados com os seus presidentes. Possivelmente há uma disciplina escolar extra, contar presidentes. Os russos riem-se disso. Nós podemos contar os nossos presidentes com os dedos de uma mão. Mesmo que a mão só tenha três dedos.  


5 comentários:

Gi disse...

Uma mistura um tanto desconcertante de seriedade e humor, não é?

Baltazar Garção disse...



Muito humor, sim. Mas nada desconcertante: certerio e afiado! Por exemplo, diz tudo sobre os portugueses: pelo menos desde 2002, com a vitória do Durão Babboso, são o Povo que mais adora "multiplicar o mal". E penso que não vão ficar pelo ataul Vladimir P. Coelho...

Baltazar Garção disse...

"certeiro", claro...

Helena Araújo disse...

Durão Babboso, hihihihi

Baltazar Garção disse...


Ai, que horror, foi só "gralhas"! Refiro-me ao "atual Vladimir P.", claro...

;-)