05 dezembro 2013
quem não sabe é como quem não lê...
Ontem, em conversa com alguns amigos sobre o livro "Leite Derramado", de Chico Buarque, aprendi que uma das suas características mais geniais é o perfeito domínio da língua: no monólogo das suas memórias, o velho Eulálio atravessa mais de 200 anos da história do Brasil, e vai adaptando o registo a cada época. Ou seja, e simplificando: uma boa parte daquele livro está escrito em português de Portugal. Não me dei conta disso durante a leitura mas, pensando bem, devia ter desconfiado: pois se estava a perceber quase tudo sem qualquer dificuldade, sem precisar de consultar o Aurélio, nem nada!...
Também não notei nada de estranho nos estranhos costumes daquela gente: a branca corrupção dos poderosos, o nepotismo, as senhoras finas a falar francês e a tocar apagadamente piano, o machismo dos fracos (perdoem a tautologia), o jeito de se alimentar das memórias do passado para sobreviver ao presente.
Tão português, o livro. E muito brasileiro também (a História, os movimentos dentro da geografia carioca, as metáforas sobre a sociedade brasileira). Além de um Chico esplendoroso de elegante ironia, cunhando frases com precisão de ourives - agarrem-me, que é desta que começo a transcrever trechos de um livro para um caderninho, para mais longamente saborear.
Cá vou eu para a terceira volta do Leite Derramado. Um dia destes (e com uma pequena ajuda dos amigos) ainda aprendo a ler.
***
Parece que o livro já foi traduzido para alemão. Estou curiosa para ver se o tradutor detectou a diferença entre o português de Portugal e o do Brasil, e como terá reflectido esse fenómeno no universo da língua alemã. Estas difíceis traduções...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
É um belo livro, li-o de um fôlego. Mas também não notei essas nuances, tenho de lá voltar.
A propósito de traduções deixo aqui um link (http://www.dailykos.com/story/2013/01/05/1176645/-Outrage-in-Delaware) que já deixei no blog "Travessa do fala-só". Com o comentário do Vítor sobre a ausência de letras dumas imagens para as outras, fiquei na dúvida se não seria montagem.
Há livros que lemos com os olhos, mas também há aqueles que lemos com todo o nosso coração. Parece que esse é um deles.
Um abraço, Helena!
Izzie, a parte da língua deve ser mesmo muito difícil de notar para portugueses sem um profundo conhecimento do português falado no Brasil. Mas mesmo sem isso, o livro tem nuances extraordinárias - como aquele detalhe da mulatinha que havia de "salvar" esta família em declínio acentuado.
Moacir, você já leu esse livro?
jj. amarante, pois é: entregam as traduções a diletantes, é o resultado!
;-)
Enviar um comentário