24 maio 2013

no serralho



Maio tem sido o mês de Mozart na Komische Oper.
Infelizmente não repetiram a Flauta Mágica do Neuenfels, mas vimos o Rapto do Serralho com encenação do Calixto Bieito.

Ao entrar na sala, ouvi um senhor protestar: "isto é como na Reeperbahn!"
Não sei como é a Reeperbahn (tenho lacunas graves na minha cultura geral, eu sei) mas comentei com o Joachim que se nós não vamos a Amesterdão, Amesterdão vem ter connosco: os camarotes ao lado do palco tinham sido transformados em montras de prostitutas.

Logo na Ouverture, uma artista de circo em roupa interior erótica equilibra-se num baloiço sobre as nossas cabeças, o seu corpo deitado agita-se em ondas que não deixam dúvidas sobre o que nos espera. De modo que não nos surpreende que logo a seguir o barítono se dispa completamente, se meta na cama com uma prostituta, e desate a saltar em cima da cama (como o Tom Cruise no sofá da Oprah, mas em nu). Depois vai cantar para debaixo do chuveiro (mais uma cotovelada, mais uma gargalhada contida - To Rome, with Love!). Finalmente veste-se, mas um pouco mais tarde está a cantar deitado no chão, com a cabeça entre as pernas de outra mocinha. E assim por diante.
Acontece-me muitas vezes na Komische Oper olhar para os cantores e lembrar-me dos legionários romanos do Astérix que depois de levarem uma tareia se lamentavam: "alistem-se no exército, diziam ele, vão ter uma vida sossegada..."

Parece estranho, mas conquistou-me inteiramente. Calixto Bieito expõe com toda a crueza o tema central daquela ópera: a sujeição das mulheres ao poder e à brutalidade masculinos.
Encenada à maneira antiga, com vestidos e cabeleiras barrocas, turbantes orientais, cenários clássicos, seria um assunto deles e do antigamente. Com esta interpretação, Bieito transporta a ópera de Mozart para o nosso tempo, e põe no centro do palco aquilo que nós nos obstinamos em ignorar: a escravatura de prostitutas, a droga, a violência do sexo forçado.  

Fá-lo com muito ritmo, e tem alguns momentos especialmente bem conseguidos, nomeadamente a cena em que Bassa Selim ameaça Konstanze: nas divisões por trás deles sucedem-se delírios do sexo profissional, enquanto à boca do palco uma mulher é barbaramente assassinada. Gulp.

Já na rua, num semáforo vermelho, conversávamos sobre o barítono (cujos graves deixavam um pouco a desejar, dizia eu), e um homem meteu conversa. Parecia em estado de choque, queria saber a nossa opinião. Dizia "foi pesado, foi pesado". "Bom", disse eu, "já temos todos mais de 18 anos...", mas ele continuava a pedir socorro: "foi muito ousado".

Foi muito ousado, sem dúvida. Atirou-nos para a mais profunda miséria, oferecendo-nos a música de Mozart não como um gosto do espírito, mas como uma redenção.
 




4 comentários:

Rita Maria disse...

Melóbeiu.

Helena Araújo disse...

:)

(tens andado no Porto?)

Gi disse...

A rua das prostitutas em Reeperbahn é vedada às mulheres, pelo menos foi o que me disseram.

Helena Araújo disse...

O que eu aprendo contigo, Gi!
http://www.reeperbahn-hamburg.com/Herbertstrasse.htm